É muito comum que homens corretos e decentes sintam-se injustiçados quando as mulheres reclamam de assédio constante no ambiente de trabalho e no convívio social. A maioria responde com o "não generalize", que nos irrita profundamente porque significa que a vontade de se mostrar correto fala mais alto que a disposição para ouvir nossas dores. Durante a pandemia, muitos homens finalmente começaram a entender do que as mulheres tanto reclamam. Não é dos homens em geral.
A imensa maioria dos homens repudia o tipo de comportamento que é o pesadelo diário de mulheres no ambiente de trabalho, de estudo, no transporte público: o assédio. E quem faz sabe disso. Por isso, assediadores só se revelam para um pequeno grupo de homens, os covardes. Agora, os homens corretos estão conhecendo essa realidade pelos descuidos nas reuniões por videoconferência.
Tanto covardes quando predadores de mulheres temem as reações dos homens corretos, que são a maioria. Se uma mulher não tem a força física para reagir e pode ter sua reputação facilmente demolida pelo grupo, um homem de princípios pode arruinar todo o esquema de imoralidades. Numa conivência perversa e silenciosa, eles impõem um véu sobre a verdade, destróem vidas e enlameiam reputações. A escuridão e o silêncio impostos às diversas vítimas que deixam pelo caminho são a garantia de que consigam se passar por pessoas decentes apesar da podridão moral.
Diante das reclamações insistentes das mulheres, muitos homens se sentem injustamente acusados. Afinal, jamais presenciaram algo assim e, se tivessem presenciado, a reação certamente seria um evento inesquecível. Um assediador jamais vai atacar uma vítima diante de um homem correto, para ele vai se fingir de frágil, de bobo, de sonso, de muito educado. As perversidades serão feitas diante dos falsos bonzinhos, aqueles que postam mensagens maravilhosas nas redes sociais mas são perversos o suficiente para calar diante de uma atrocidade que podem interromper e não se incomodam com injustiça e sofrimento alheio. Sem o falso bonzinho, o predador jamais teria sucesso. Sem o predador, o falso bonzinho jamais poderia realizar suas fantasias perversas.
Muitos homens decentes têm ficado estarrecidos ao descobrir que conviveram durante anos tanto com predadores quanto com falsos bonzinhos sem jamais desconfiar de nada. Natural, julgamos os outros de acordo com nossos valores. Uma pessoa de princípios não imagina que aquela que trabalha ao seu lado faz discursos inspiradores apenas para garantir que possa delinquir sem despertar suspeitas. Só que agora, com a pandemia, estamos vivendo numa espécie de Big Brother. Para os que podem fazer home-office, as reuniões são todas gravadas e, depois de um tempo, as pessoas esquecem que as câmeras estão ali. São fartos os exemplos do mais absoluto desrespeito com mulheres no ambiente de trabalho.
Este vídeo, em que um desembargador faz um comentário absolutamente indecente sobre a advogada, no meio da argumentação dela no julgamento, é uma dor que a maioria das mulheres já sentiu. Ao mesmo tempo em que a sua dignidade é pisoteada por um predador, os demais fingem que nada aconteceu, validando a atitude.
Muitos amigos que são do meio jurídico ficaram absolutamente escandalizados ao ver esse vídeo, estão até ansiosos por punição, por movimentar o CNJ, fazer algo. As amigas do meio jurídico não. Para nós, mulheres, é comum conviver com a simbiose amaldiçoada dos covardes e predadores. Para os homens decentes, esse é um mundo descortinado descuido a descuido com as câmeras. Muitos estão finalmente entendendo que não é com todos os homens e nem uma generalização, é um problema que existe, é causado por uma minoria, mas torna-se devastador para muitas mulheres devido ao pacto de cumplicidade desses grupos e à capacidade de difamar.
Esses flagrantes muitas vezes revelam uma personalidade escondida, um "lado B", como dizíamos na época do disco de vinil. Ali, sob o manto de profissões muito glamurosas e títulos pomposos, vemos um comportamento e um linguajar que, se bobear, o pessoal não aceita nem em bordel de beira de estrada. A maioria das famílias brasileiras não tolera esse tipo de comportamento, são episódios escondidos e, quando envolvem gente chique, passam a parecer inacreditáveis. Mais fácil a vítima ser paranoica do que aquilo ter acontecido mesmo.
Nos dois casos flagrados aqui temos mulheres privilegiadas socialmente, com vidas profissionais sólidas, títulos acadêmicos, respeito social, boas condições financeiras. Se as mulheres que fazem parte dessa elite intelectual e financeira e, em tese, teriam como se defender, precisam aturar esse tipo de baixaria e violação da própria dignidade no dia-a-dia do trabalho, avalie o que têm de aturar as outras milhões de brasileiras.
Explicar essa realidade é difícil no barulho ensurdecedor das redes sociais, principalmente após o que tem se chamado nos Estados Unidos de "a quarta onda do feminismo", a partir de 2012 mais ou menos. A expressão é da escritora Meghan Daum. Temos uma militância que se baseia principalmente na internet, problematiza tudo, ataca todos os homens, é muito agressiva e trata o mundo atual como se fosse um pesadelo para as mulheres. Ignora a realidade, que essa é a melhor época para ser mulher na história da humanidade.
Diante dessa explosão de raiva, clichês e hashtags todas as reclamações que vêm das mulheres acabam sendo enfiadas nesse pacote de nonsense, vingança e fuga da realidade. É preciso separar as coisas. Toda mulher que nasceu antes do ano 2000 vive hoje um mundo que jamais imaginou poder viver, com oportunidades, liberdades e respeito que nem sabíamos que podíamos exigir. A ideia de que mulheres e homens são iguais em dignidade e direitos é muito nova na história da humanidade, ainda está em fase de acomodação. Enquanto a maioria trabalha pela harmonia, há quem esteja muito bravo por não poder mais subjugar pessoas como se podia fazer há algumas décadas. Esse problema precisa ser enfrentado.
A verdade sempre vem à luz. E essa verdade dura, da maldade que transitava entre nós pelas sombras, com sede de provocar dor e humilhação enquanto se travestia de boa pessoa, veio à tona na pandemia. Todos os dias eu recebo vídeos de homens sendo absolutamente indecentes com suas colegas de trabalho e isso só foi descoberto porque, por um descuido, foram gravados. Muita gente tem ficado triste e incomodada ao perceber que convivemos com isso e muitos não perceberam. O que importa são as ações que tomaremos de agora em diante. O bode está na sala e precisamos decidir o que fazer com ele.
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