Um dos meus provérbios africanos preferidos é "It takes a village to raise a child", em tradução livre, "É preciso de uma cidade para criar uma criança". Sem dúvida que é uma coisa bonita, assim como é lindo defender a importância da família. Mas e quando esses valores esbarram com a prática e com outros valores como, por exemplo, os financeiros?
Num mundo impulsionado pelo consumo, a lógica é que as vidas humanas são o combustível do mercado, do crescimento, de mais dinheiro, de mais produtividade. Para quem tem valores é o oposto. O desenvolvimento e a inovação devem atender as necessidades humanas, garantir a qualidade de vida das famílias, além do desenvolvimento de cada um e de todos.
Se há algo esmagado nessa colisão de valores humanos com financeiros é, com toda a certeza, a maternidade. Nós, mulheres, chegamos ao mercado de trabalho primeiramente por necessidade e agora por escolha. Temos de abrir mão de ser mães?
Considero que ser mãe é um dom. Nem toda mulher que gera um filho é mãe e, por outro lado, há mães que não geraram uma criança. Há também quem não se encontre nesse universo. Tudo faz sentido desde que seja uma escolha da mulher ou daquele núcleo familiar, não uma pressão externa da mesma sociedade que se diz - e coloca até na Constituição que é - protetora da família e da infância.
Por isso é tão importante o posicionamento firme da Justiça do Trabalho ao mostrar que o artigo 226 da Constituição Federal não está submetido a normas inferiores ou a conveniências do momento. Em dois casos diferentes esta semana, desembargadores e ministros mostraram na prática como aplicar o que diz a Carta Magna:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Sempre que se fala em "planejamento familiar", a primeira ideia que vem à mente é a contracepção, evitar ter filhos. Saibam que o pai da ideia de colocar isso na lei tem 6 filhos, todos com a mesma esposa. É o médico Eduardo Jorge, que foi vice de Marina Silva nas últimas eleições. Outro dia, ao rir da contradição entre o tamanho da própria família e fazer lei de planejamento familiar, explicou-me sem rodeios: "É para cada um planejar fazer o que quiser. Eu quis ter filho".
É importante notar que, segundo a Constituição, o Estado deve propiciar os recursos educacionais e científicos para planejar a família - com quantos filhos se decidir ter - e nenhuma instituição oficial ou privada pode coagir alguém a fazer o que não quer. Mas somente agora, mais de 30 anos depois da Constituição, o TST decidiu que as empresas não podem coagir mulheres a desistir do sonho de ser mãe. Isso, infelizmente, acontece.
Para algumas organizações, parece que o mundo seria mais fácil se ninguém tivesse família, se as mulheres não quisessem ser mães, se as crianças não existissem. Qual seria a finalidade dessas organizações num mundo assim?
A ministra Maria Helena Mallmann, do TST, acaba de fixar em R$ 30 mil a indenização devida a uma bancária que foi humilhada pela chefe na agência quando informou que estava grávida. A moça havia sido Coordenadora de Atendimento e depois promovida a Gerente de Pessoa Física, cargo que ocupava em 2009, ano em que engravidou. A superior dela fez uma reunião com diversos funcionários e disse diante de todos que a subordinada estava "assinando um atestado de burrice", que "não tinha estrutura para gerar um filho" e que a maternidade iria prejudicar sua ascensão profissional.
Segundo as testemunhas no processo, foi uma reunião bem pesada e a Gerente, que estava grávida, saiu da sala chorando. Em seguida, pediu demissão e resolveu entrar com ação. A primeira instância definiu a indenização em R$ 10 mil, a segunda subiu para R$ 15 mil e o TST decidiu dobrar o valor para inibir o empregador de agir assim com funcionários que decidem constituir família.
Também esta semana, o TRT da 15a Região deixou claro que os direitos fundamentais estão acima das leis inferiores, inclusive as trabalhistas. Uma professora municipal de Campinas pediu para que sua jornada de 40 horas semanais fosse reduzida para 20 horas a fim de cuidar do filho autista. A prefeitura foi contra e ela resolveu apelar ao Poder Judiciário.
Numa decisão histórica, o desembargador Edison Pellegrini mostra que o nosso ordenamento jurídico entende que "It takes a village to raise a child". Uma sociedade é, de acordo com a nossa lei, um conjunto de núcleos familiares.
A negativa da redução de jornada tinha como base o fato de não haver previsão legal para isso, mas o desembargador discordou. "Os direitos fundamentais, especialmente os provenientes da Constituição Federal, além dos direitos da criança e do adolescente, superam a legislação ordinária", diz trecho da decisão destacado pelo site Conjur.
O ponto mais importante é a noção de que ter tempo para cuidar dos filhos não é benefício pessoal, enriquecimento sem causa, prejuízo ao empregador ou à empresa, trata-se de algo bem diferente. Ao cuidar dos filhos, as mães estão ajudando o Estado a cumprir seus deveres legais. Segundo o desembargador Edison Pellegrini, reduzir a jornada é "dar um mínimo de condições para que esta mãe, na verdade, auxilie o Estado no cumprimento de um dever que é seu, qual seja, garantir que a criança com Transtorno do Espectro Autista possa gozar dos seus direitos humanos e ter a sua dignidade como pessoa respeitada".
Segundo pesquisa da FGV, quase metade das mulheres que têm filhos abandonam o mercado formal de trabalho após a licença-maternidade. As licenças de 6 meses, dadas por algumas empresas, têm ajudado a melhorar os números. Mas é na oferta de creches e na flexibilidade de trabalho que está o grande nó, ainda não enfrentado pela nossa sociedade com seriedade. Ter filhos é uma decisão individual, cuidar das nossas crianças é um dever coletivo.
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