| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
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No mundo digital, nada é o que parece. Existe uma máxima de que, se você não está pagando pelo serviço é porque você é o produto. Não seria diferente nos aplicativos de relacionamento. Esta semana, o mais famoso deles, o Tinder, anunciou que vai providenciar checagem de antecedentes criminais das pessoas que estão na plataforma. Nossa, mas precisa de tanta coisa? Precisa. Não é só a sua vida digital que está avançando, a dos bandidos também está. Tecnologia é democrática.

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Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, as denúncias de violência ou golpes iniciados via aplicativos de paquera aumentaram 250% durante a pandemia. Eu poderia analisar? Poderia. Eu deveria analisar? Talvez. Mas tenho preguiça. Talvez até um pouco de inveja. Quando lançaram o tal do Tinder aqui no Brasil, resolvi instalar. Os crushes me conheciam do YouTube. O que mais queriam de mim eram vídeos com saudações e beijos para as avós deles, minhas fãs. Ouvi a frase "meu pai te ama" de 104,32% dos matches. Meu psicólogo aconselhou desinstalar o aplicativo.

Tenho o defeito de ser uma pessoa desconfiada. Fiquei com a pulga atrás da orelha logo que vi o anúncio efusivo de se ofereceriam as fichas criminais de crushes do Tinder. Infelizmente, é necessário. Aplicativos de paquera, durante a pandemia, viraram um mercado interessantíssimo para golpistas. Mas de onde viriam esses dados? São confiáveis? E se houver algum erro? Quem se responsabiliza por isso? A intenção é boa mas, de novo, vocês sabem onde está lotado de boas intenções.

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Tenho acompanhado atentamente como plataformas de paquera se comportam em processos judiciais envolvendo golpistas. Aqui no Brasil, por exemplo, foram necessários 50 processos judiciais para que as instituições conseguissem enquadrar um deles. O Tinder nem se mexeu. Aliás, quando eu fiz a matéria, o dito-cujo continuava no Tinder. Quem resolveu mesmo a parada foram as próprias vítimas, avisando as potenciais vítimas. Se pelo menos elas ganhassem o dinheiro que a plataforma ganha com o negócio, poderia até compensar o esforço, né?

Para as autoridades, ainda é muito difícil lidar com a quantidade de variáveis trazidas pelo mundo virtual. A isso se alie a mudança frenética que a legislação penal brasileira sofre cada vez que um caso criminal faz sucesso na imprensa. Já não basta ter de se adaptar ao emaranhado que virou a lei penal, ainda tem uma nova realidade em que é preciso aprender a enxergar quem fez exatamente o que na história. A plataforma facilitou o encontro e lucra com isso. Mas a intenção do delito é do golpista, claro. E, no caso de alguém já processado 50 vezes, a plataforma não sabia que era golpe? São discussões que ainda vão adiante algum tempo até que tenhamos uma solução definitiva.

Ao decidir que é necessário dar acesso aos antecedentes criminais dos próprios usuários, a plataforma admite o problema do qual mais os aplicativos de paquera têm tentado se esquivar. Mas observem o pulo do gato: essas empresas não se puseram de acordo com instituições ou autoridades estabelecidas. A ideia é sempre a de fazer as próprias regras, um governo paralelo. Os tais dados criminais também são apurados por uma outra empresa independente.

Segundo o que informou o Tinder, os dados criminais virão de uma Organização Não Governamental voltada à proteção de mulheres nos Estados Unidos, a Garbo. Dando o nome completo ou o telefone do crush, a mulher saberá se ele tem registro de prisão, condenação ou alguma ordem de afastamento de vítima de assédio e crimes violentos. Outros crimes como, por exemplo, tráfico de drogas não serão informados. A ONG trabalha catalogando o que considera violência específica contra a mulher.

Entramos aqui numa primeira discussão que não foi pacificada na maioria dos países ainda, a do que indicaria risco de violência contra a mulher. Na criminologia, os agressores geralmente são sempre os mesmos. Se não forem tratados, podem se separar de uma mulher e farão o mesmo com outra, seguirão esse padrão de relacionamento. No entanto, condenações anteriores por violência contra a mulher não são os únicos indicadores de risco. Os outros indicadores deveriam entrar nos dados oferecidos ou não, já que a ONG com a qual a parceria foi firmada não os considera? É algo que começa a dar a impressão de ser mais uma ação de marketing do que uma ação efetiva para evitar casos reais de violência e golpes que estão em ascenção.

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Tem ainda mais uma pegadinha, a de que precisa pagar pelo serviço. Não vai ser toda a usuária do Tinder que poderá fazer essa checagem, só as que pagam mensalidade para o aplicativo, uma espécie de afiliação vip. Isso cria uma situação inusitada. Pelo aplicativo, uma usuária pode receber a informação de que um usuário é procurado pela Justiça por matar a namorada. Já a que não paga, se der match, não será avisada pelo mesmo aplicativo. Vejam que magnífica essa luta contra a violência de gênero!

E nos casos em que a mulher é quem agride homens com quem se relaciona? Trata-se, criminologicamente, de absoluta raridade, mas existe. Menos de 1% dos casos, só que isso não diminui a dor e o prejuízo da vítima, que podem muito bem ser evitados. Já que é tudo por computador, não há razão para inexistir um sistema semelhante a que também os homens possam recorrer. Lembremos que, em época de pandemia, Tinder virou fonte de renda alternativa para golpistas. Será que não teria mudado também o perfil dos golpistas?

E, diante de tanta gente elogiando a tal da história maravilhosa e progressista, sinto falta do pessoal que aponta homofobia em tudo. Cadê? O Tinder também não oferece alternativa para quem busca relacionamentos com pessoas do mesmo sexo? Mulheres que procuram mulheres não poderão saber antecedentes criminais da crush. O mesmo para homens que procuram homens. No universo LGBT já tem um aplicativo para quem gosta de esconder identidade e correr perigo, chama Grindr. Dizem as más línguas ser um paraíso dos falsos héteros. Os que vão ao Tinder buscam algo diferente, já que a marca vende relacionamentos, encontros, não pegação.

O que mais me preocupa nessa história toda é a reafirmação da narrativa das Big Techs. Elas querem assumir funções que são de Estado e da cidadania e realmente se julgam capazes disso. Até são, se começarmos a encarar a vida humana como dano colateral diante dos lucros dessas empresas. Uma ONG não pode ser baliza do que é ou não antecedente criminal e muito menos de qual antecedente deve ou não ser divulgado. Uma plataforma social de encontros não pode selecionar entre seus usuários os que podem ou não ter acesso ao histórico criminal dos demais. Empresas são para inovar, não para governar.

O caso é que a tal inovação dos antecedentes criminais ainda vai demorar muito para chegar aqui no Brasil. Nos Estados Unidos, determinados tipos de crimes geram registros públicos. O abuso sexual infantil é um deles. Considera-se que a vizinhança tem o direito de saber se um criminoso do tipo vive na região. Parece muito razoável e nos sentimos tentados imediatamente a validar. Infelizmente, não é o país que melhor lida com esse tema. Há diversos modelos sobre o que fazer com criminosos que atentam contra pessoas. Crimes patrimoniais têm soluções muito melhor acabadas.

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A tecnologia trouxe avanços gigantescos no combate à criminalidade de todo tipo no mundo inteiro. É inegável. E isso foi tão rápido que fica difícil até lembrar como eram feitas as coisas antes que tivéssemos a tecnologia de que hoje dispomos. Não podemos, no entanto, cometer o erro de creditar o avanço apenas à máquina. Se houve avanço é porque temos o elemento humano. Pessoas com experiência, conhecimento e espírito público souberam utilizar esses avanços todos para melhorar o combate ao crime. Sem o valor humano, a tecnologia não será efetiva. É o caso da falsa promessa do Tinder, falta a ela a expertise que dê efetividade à intenção.

Se existe tecnologia para rastrear potenciais agressores de mulheres e informar àquelas dispostas a encontrar-se com eles, de nada adiantará usar isso de forma comercial. É o caso. Essa tecnologia só será efetiva se usada de forma estratégica para o combate à violência. Aqui, o uso é estratégico para a fidelização de mulheres no grupo pago do aplicativo. Também há um uso estratégico de marketing, ligando a marca Tinder à preocupação com mulheres e ao combate da violência de gênero. Imagina todo esse esforço utilizado no combate aos golpistas instrumentalizados pela própria plataforma?

O Tinder não é obrigado a fazer isso, o faz por uma liberalidade. Por enquanto, ninguém disse que aplicativos de encontros são responsáveis pelo uso que golpistas fazem deles. Também não foi determinado que devem informar antecedentes criminais dos usuários de suas plataformas. A empresa tem todo o direito de fazer uma ação de fidelização de consumidores pagos e, de quebra, ainda tentar emplacar um marketing positivo. Cabe a quem tem compromisso com o público e com os fatos colocar cada coisa em seu devido lugar.

Aliás, para terminar, vamos ao devido lugar disso tudo. Aplicativo de namoro não é mais seguro que encontrar alguém no meio da rua, numa rodoviária, numa balada, no supermercado. É alguém que você não conhece, não tem como saber quem é e não tem como rastrear. Muitos têm na internet uma falsa sensação de segurança. É como se a existência do perfil fosse um rastro verificável. Ouvimos direto que a plataforma facilmente identifica o IP e chega até a pessoa, mesmo que o perfil seja anônimo. Não é tão simples.

Eu tenho amigos que casaram-se com pessoas que conheceram em aplicativos. Conheço também uma moça que foi dopada num encontro num restaurante e depois estuprada. É como um jogo de roleta, muito diferente, por exemplo, de conhecer alguém de que você realmente tem alguma referência. Ir a um encontro com alguém que é do seu círculo de relacionamento, da igreja ou da faculdade é um nível de referências diferentes de um aplicativo. Dito isso, já tive surpresas homéricas vinda de gente que conheço há mais de 20 anos. A coisa mais incrível do mundo continua sendo o ser humano.

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