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Imagine que fosse possível manipular milhares de pessoas a trabalhar de graça a favor de uma empresa numa disputa bilionária de mercado. Possível é, resta saber se o perfil anônimo Sleeping Giants faz de propósito ou como dano colateral. As ações das gigantes do Vale do Silício, principalmente das redes sociais, são sempre impecavelmente empacotadas num discurso bem intencionado. Eu até gosto, mas sou apaixonada mesmo por "follow the money", então decidi ir atrás.
Os anônimos provavelmente não sabiam nada de mim quando vieram tentar me intimidar publicamente com a tática infantilóide da chantagem em discurso passivo/agressivo. Gente séria mostra a cara e diz o que pensa. Aprendo sempre com pessoas que conheço ou não conheço e têm a paciência de me mostrar um ponto em que errei e como não repetir esse erro. Para os amadores chama mudar de opinião, para os profissionais chama evoluir.
Comecei a pensar que talvez a maioria das pessoas tenha caído no mesmo erro do Sleeping Giants ao mirar em mim e não reparar o estrago. As pessoas talvez não tenham reparado que não sabem o suficiente sobre a mítica PayPal, a revolução do mercado de pagamentos online na pandemia e a guerra comercial bilionária com o Pag Seguro. Contra ou a favor, há décadas todos ficam hipnotizados com as eternas batalhas simbólicas quentes e verborrágicas do jornalista Olavo de Carvalho.
O jornalista já foi polemista na imprensa, depois representante polêmico do islamismo, da astrologia e agora do que resolveu chamar de filosofia. É inegável o talento para a oratória que atrai e fideliza seguidores fervorosos, leais e belicosos. Antes da era da militância de universo simbólico, no entanto, autoridades e líderes costumavam comparar o discurso com as ações dele antes de dar crédito.
Nessa nova era, autoridades do primeiro escalão da política brasileira pela primeira vez levam o jornalista a sério. É possível que, por isso, seus detratores tenham armado uma campanha para dizimá-lo. Coincidentemente, essa campanha desequilibra uma disputa comercial bilionária e uma das partes fez um gordíssimo investimento na plataforma virtual que a lançou.
Governos do mundo todo, principalmente dos Estados Unidos e da União Europeia, tentam fazer com que as Big Techs cumpram leis e não conseguem. A preocupação deles é que o comportamento de algumas delas, principalmente das redes sociais, pode abalar as instituições democráticas manipulando e enganando cidadãos comuns. E se essa estratégia começasse a ser usada para fazer a diferença em disputas de mercado? Não sabemos como essa história começou, mas trago para vocês alguns desdobramentos financeiros.
O boom dos pagamentos online na pandemia
Para nós, são apenas aplicativos que usamos de acordo com a conveniência e têm salvado a pele de muita gente durante a pandemia. A partir da sua própria experiência com pagamentos eletrônicos e delivery neste 2020, avalie o quanto este mercado cresceu e passou a ser disputado. As operadoras de cartão de crédito avaliaram na ponta do lápis.
Durante a pandemia, 56% dos brasileiros passaram a usar novas formas de pagamento e 75% usam meios digitais, segundo pesquisa da Mastercard. O levantamento da Abecs (Associação Brasileira de Empresas de Cartões de Crédito e Serviços no Brasil) indica que 44% do consumo no Brasil é pago com soluções online. O setor, que já estava em crescimento, aposta num recorde histórico de 110% em comparação com o ano passado. Estima-se que as empresas de e-commerce faturem R$ 111 bilhões este ano.
É claro que amor ou ódio por um polemista que se meteu a Rasputin podem ser mais fortes que a participação num mercado de R$ 111 bilhões. Tudo fica no terreno da incerteza porque não sabemos quem está por trás do perfil Sleeping Giants. No entanto, é fato que ele pressiona especificamente o Pag Seguro, concorrente direto de empresas nas quais o Paypal investiu.
Não é muito claro como impedir que o polemista use Pag Seguro diminuiria o discurso de ódio nas redes sociais. É possível argumentar usando a surrada estratégia do gabinete do ódio original, a de que "todo mundo sabe que ficar sem dinheiro diminuiria a atividade". O gabinete do ódio do bem fez isso e surpreendentemente ainda cola. Ocorre que há centenas maneiras de fazer os pagamentos, não foi demonstrado o impacto real da ação do Paypal e o "alvo" continua falando as mesmas coisas nos mesmos lugares.
Mais complicado ainda é explicar como se diminuiria o discurso de ódio convencendo a gigantesca CPP Investments, que gere os fundos de pensão para 20 milhões de cidadãos canadenses, a tirar investimentos especificamente do Pag Seguro. No entanto, é cristalino como essa ação poderia impactar a briga bilionária do Pag Seguro com o Mercado Pago no mercado das maquininhas de pagamento. Vejam que coincidência: a PayPal investiu US$ 750 milhões no Mercado Livre e virou parceira do Mercado pago.
Mais uma coincidência, foi justamente no início desde ano que o Mercado Pago anunciou a intenção de se jogar na disputa pelo mercado das maquininhas de pagamento. Mesmo antes da pandemia, no primeiro trimestre, o crescimento já era de 23% com relação ao mesmo período do ano passado. Antes, só bancos e empresas de cartão de crédito forneciam as maquininhas de crédito e débito que você usa com todos os cartões. A brasileira Pag Seguro entrou nesse mercado há alguns anos e se consolidou oferecendo taxas menores. A Argentina Mercado Livre, com seu braço Mercado Pago, viu uma chance de expansão.
Mesmo antes da pandemia, gigantes como o Softbank e a Paypal estavam de olho no mercado brasileiro de pagamentos eletrônicos, coalhado de inovações e startups. Muitas dessas empresas receberam autorização do Banco Central para passar oferecer quase todos os serviços de instituições bancárias tradicionais, como conta e cartão de débito e crédito. Pag Seguro e Mercado Pago estão entre essas empresas, com a vantagem de já serem marcas com boas relações no setor de consumo brasileiro, seja pelas maquininhas de uma ou pelas lojas virtuais da outra.
Diante do crescimento impressionante do setor durante a pandemia e da autorização do Banco Central para abrir contas e emitir cartões, a Pag Seguro fez uma reestruturação acionária em julho. Transformou os sócios minoritários em acionistas da empresa, uma operação em que eles saíram do capital social e receberam em troca 21,316 milhões de ações da Pag Seguro. Assumiram o compromisso de não se desfazer dessas ações até julho de 2022 e depois vender apenas 1/12 avos por mês, já que uma venda em massa derruba o valor de uma empresa. Imagine qual seria o efeito da venda imediata das 7.679.797 ações que a CPP Investments adquiriu da Pag Seguro, como querem os anônimos por trás do Sleeping Giants.
O que é CPP Investments
Estamos falando numa disputa de bilhões no mercado brasileiro entre as latinoamericanas Pag Seguro e Mercado Pago, que é apenas um braço do gigante argentino Mercado Livre. Elas são nanicas perto da PayPal e da CPP Investments. Quando eu digo nanicas, falo do valor de mercado de US$ 9 bilhões do Pag Seguro, dos US$ 221 bilhões da Pay Pal e dos US$ 456 bilhões administrados pela CPP Investments. As gigantes investem nas menores, em alguns casos são parceiras e em outros, como este, são concorrentes.
A CPP Investments é um fundo criado em 1997 pelo parlamento do Canadá como um dos atos de uma Reforma da Previdência. Trata-se de uma agência independente do governo, com mandatos, destinada a garantir a aposentadoria dos canadenses nas próximas gerações. Na ponta do lápis, é preciso ter um rendimento anual de 8% a 9% do que se recolhe dos trabalhadores canadenses para aposentadoria ou não haverá como garantir que as próximas gerações mantenham o nível das pensões.
O Canadá criou uma empresa independente, a CPP Investments, destinada a investir todo o dinheiro das aposentadorias do país e obter retornos. É um dos maiores fundos de investimento do mundo, com atuação em 55 países, nos mais diversos setores. Os diretores têm mandatos independentes, mas devem satisfações ao governo e transparência ao povo do Canadá. A regra de investimentos é rígida tanto nos critérios financeiros quanto nos critérios éticos.
Os anônimos do Sleeping Giants alegam violação do próprio código de conduta pelo Pag Seguro como justificativa para que a CPP Investments venda suas ações e deixe de investir na companhia. As alegações, mais uma vez, fazem um malabarismo argumentativo digno de medalha olímpica. As regras que, segundo os anônimos, foram violadas, seriam as do artigo 8 do estatuto do Pag Seguro:
b. agir contrariamente à moral e aos bons costumes;
e. usar linguagem ou imagem ou transmitir ou propagar mensagem ou material que denotem ou promovam o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, ou que incitem à violência ou ao ódio;
f. desrespeitar os direitos de terceiros à honra;
g. usar linguagem ou imagem ou transmitir ou propagar mensagem ou material ilegal, calunioso, injurioso, difamatório, prejudicial, abusivo, ameaçador, vulgar, indecente, obsceno ou de qualquer outra forma censurável.
Não há dúvidas de que tem isso tudo no conteúdo de Olavo de Carvalho, mas o estatuto rege as atividades da empresa, não dos clientes dela. Aliás, quantos criminosos, estupradores, abusadores sexuais infantis e assassinos são clientes de instituições financeiras para operações lícitas? Os anônimos do Sleeping Giants vão pedir para a CPP Investments tirar investimentos de todos os negócios que atendem personalidades questionáveis em 55 países?
O mais incrível da carta em que o Sleeping Giants faz todas essas demandas é que ela não tem assinatura. Talvez eu esteja errada. Há quem possa argumentar que o mais incrível é poupar outras empresas em que o mesmo fundo investe e que são as maiores responsáveis pela veiculação do discurso do polemista, as redes sociais. Aliás, é curiosíssimo que o pedido seja por ações contra a Pag Seguro quando a maioria dos exemplos de discurso de ódio foi veiculada no Twitter.
É possível até argumentar a responsabilidade indireta do Pag Seguro na disseminação do discurso, mas façamos a justa comparação no material apresentado pelos anônimos do Sleeping Giants. Se até eles são responsáveis, por que Twitter, YouTube, Facebook e Instagram não são? Maldosos diriam que é porque são as empresas que defendem o anonimato de eminências pardas como esse movimento. Pura maldade.
PayPal, uma lenda do Vale do Silício
Quase todos os ícones empresariais do Vale do Silício são filhotes da PayPal, que surgiu em 1998, quando tudo lá ainda era mato. A venda da empresa para o e-Bay, em 2002, fez com que os funcionários se espalhassem por novas empresas e muitos deles são nomes que você conhece sem imaginar que nasceram na PayPal. No mercado tech, esse clube de gigantes é apelidado carinhosamente de "máfia Paypal".
Esse mercado é um emaranhado de empresas em que a CPP Investments é um grande investidor. Um exemplo: a CPP Investments juntou-se a outros dois fundos e comprou o Skype em 2008. E aí eu pergunto aos caros anônimos do Sleeping Giants: o Olavo de Carvalho não usa Skype?
O primeiro diretor-geral da PayPal foi Peter Thiel, co-fundador, que ficou famoso na política apoiando Trump nas últimas eleições. Ele é o primeiro investidor externo do Facebook. Além disso, junto com dois ex-colegas fundou o Founders Fund (fundo de capital de risco) e a Palantir (análise de dados).
A personalidade mais ligada à PayPal é Max Levchin, o outro co-fundador, refugiado político da Ucrânia. Saindo do PayPal fundou uma empresa de apps para o Facebook que depois vendeu para o Google, que desativou o serviço. Então fundou a Yelp com dois ex-colegas de Paypal.
E, se você não é do mercado tech, não esperava por essa: até Elon Musk começou na PayPal. Em 1999, ele deixa a África do Sul e funde a própria empresa, X, ao PayPal, do qual se torna diretor-geral. Naquele mesmo ano, ganhou US$ 165 milhões com a venda para o e-Bay.
Também são dissidentes do grupo inicial do PayPal Steve Chen, Chad Hurley e Jawed Karim, os inventores do YouTube. Eles criaram o serviço de compartilhamento de vídeos em 2005 e venderam em 2006 para o Google por US$ 1,65 bilhão. Seguiram sempre juntos com novos negócios como, por exemplo, o Airbnb.
Um dos primeiros diretores da PayPal, Reid Hoffmann, era o vice-presidente executivo quando foi feita a venda para o e-Bay em 2002. Resolveu criar uma rede social só para contatos profissionais chamada Social Net e que você conhece hoje por LinkedIn. Há 4 anos, vendeu a empresa por mais de US$ 26 bilhões para a Microsoft, de onde se torna membro do Conselho. É investidor do Facebook e Airbnb, ligados aos ex-colegas de PayPal. Também investe na Change.org, plataforma de pressão social que ajudei a lançar no Brasil e da qual me tornei a primeira Diretora de Comunicação para a América Latina.
Toda essa teia de gênios do Vale do Silício e fundos bilionários tem interesse no gigantesco mercado brasileiro de pagamentos eletrônicos. Até o momento, a genuinamente brasileira Pag Seguro, nascida como um braço do UOL, domina esse mercado. Não é uma virada interessante do destino que surja nas redes sociais, onde todo esse pessoal é investidor, um movimento anônimo que pode dar vantagem a eles no mercado? Tem gente que nasce com muita sorte mesmo.
Mais coincidências
Qual o interesse do Sleeping Giants em, justamente neste momento, tomar parte de um dos lados de uma guerra comercial bilionária? É de propósito ou atiraram no que viram e acertaram o que não viram? Só eles mostrando a cara para saber. Mas há ainda outras coincidências no caminho.
O único que se sabe concretamente sobre o grupo Sleeping Giants é que têm o anonimato protegido por Twitter e Instagram e montaram o movimento de pressão sobre a CPP Investments usando uma plataforma criada pelo projeto de criação de campanhas online Bonde, abrigado pela Ong Nossas. Questionada pela Gazeta do Povo, a Ong Nossas também optou por proteger o anonimato do seu cliente mas disse que não tem nada a ver com o conteúdo que ele veicula.
Chegamos aqui a uma argumentação realmente fantástica. A Ong Nossas fez a plataforma para o anônimo Sleeping Giants pressionar um investidor estrangeiro a desinvestir do Pag Seguro mas não é responsável por isso. Já o Pag Seguro, que só faz os pagamentos, é responsável pelo conteúdo dos cursos de Olavo de Carvalho hospedados em outras plataformas. Deixo avisado que, se puder escolher, me coloquem na turma que só faz bobagem e não assume nada porque o outro lado é muito trabalho.
Ainda não acabou. A Ong Nossas recebeu, desde 2013, R$ 11 milhões em investimentos da organização filantrópica Grupo Luminate, fundada pelo grupo Omidyar, como mostra reportagem da Gazeta do Povo. Pierre Omidyar é um bilionário francês de origem iraniana da época dos dinossauros da internet. Lançou o e-Bay em 1995, fez o IPO em 1998 e continuou à frente da empresa, só que bilionário. Continua dono de 7% da empresa e à frente do Conselho. De quem a e-Bay é dona mesmo? Do PayPal, investidor do principal concorrente do Pag Seguro.
Houve uma vez em que o PayPal fez a mesma coisa que faz agora, ceder à pressão e prejudicar um cliente. Foi no escândalo Wikileaks. Pressionada quando o governo dos Estados Unidos divulgou o início de uma investigação criminal sobre as atividades do site, a empresa secou o pagamento de Julian Assange. O dono do e-bay disse publicamente que ligou aos executivos protestando contra a decisão e fez um artigo pedindo uma análise séria do respeito às liberdades individuais e aos princípios empresariais diantes da exposição das marcas nas redes sociais.
"Hoje, ao que parece, a notificação de uma investigação criminal é suficiente para forçar as empresas cuja causa não é a Primeira Emenda a cortar um editor da maneira que Amazon, PayPal, Visa e MasterCard fizeram cada um com o WikiLeaks ... Ao contrário dos antigos barões da imprensa, os executivos dessas empresas não podem dizer a seus acionistas que prejudicaria mais sua empresa ceder por uma questão de princípio do que abandonar um cliente" - disse o próprio Pierre Omidyar diante do caso em que o abandono foi devido a uma investigação criminal em nome do governo sobre o cliente.
Não sugeriria e sequer imaginaria que se trata de uma nova ferramenta forjada e usada deliberadamente para desequilibrar guerras comerciais. Certeza de que é obra do acaso e tudo será brevemente esclarecido. Ainda bem que se trata da realidade, fosse ficção, diriam que a trama é muito forçada. A nós resta decidir se, num mundo que cada vez mais depende da tecnologia, vamos permitir que milícias anônimas se metam em disputas de mercado. O negócio pode ser virtual, mas clientes e colaboradores são gente de carne e osso.