Talvez não exista nada mais característico do espírito do nosso tempo do que a cultura do cancelamento, inaugurada pela porção mais autoritária da lacração. O script é sempre o mesmo e invariavelmente tem uma justificativa moral fortíssima. Nunca é pelo mal, é sempre pelo bem e por um bem maior, para toda a sociedade. Cancelamentos são nítidos quando alguém do nosso grupo é vítima, mas e quando são os nossos que caem em tentação?
Ainda há no mundo quem tente me convencer sobre a legitimidade de um justiçamento específico. Eu já enfrentei publicamente de Sleeping Giants a Terça Livre com esse tipo de prática, não tem argumento autoritário na praça que eu ainda não tenha ouvido. Se você é do mundo evangélico, já sabe de que caso eu estou falando: pastor Ed René Kivitz. E obviamente já tem uma opinião imutável sobre o caso mesmo sem ter lido o documento de 25 páginas que ele escreveu. Na era do cancelamento, o que menos importa são fatos e ponderação.
Nesse vídeo, o pastor explica nas palavras dele o ocorrido após o sermão "Cartas Vivas contra Letras Mortas", de 25 de outubro do ano passado. Foi um único sermão em 30 anos pregando na mesma Igreja Batista Água Branca. Fazendo uma conta por alto, foram 1500 sermões a contar somente os de domingo. Tenho amigos que são contra o teor do sermão e os compreendo embora discorde. Não é esse meu ponto.
O ponto é que o vídeo viralizou. O sermão todo não, os 15 segundos do vídeo em que o pastor diz algo como "atualizar a Bíblia". Na versão dele, a igreja deve acolher melhor pessoas que têm sido afastadas da palavra de Deus pela insistência em seguir à risca versículos soltos do Velho Testamento. Na versão da internet, depende da ideologia de quem resolveu correr para a fama à bordo do sermão dele.
Para o pessoal da lacração, foi um delírio. Já imaginaram o pastor Ed Renê defendendo casamentos homossexuais e Jesus trans no púlpito da IBAB. Quem sabe até uma malhação de Judas com um boneco de Jair Bolsonaro no sábado de aleluia? No imaginário do lado oposto, dos conservadores, era preciso combater isso e a tentativa de reescrever a Bíblia ou usar só as partes que interessam. O circo foi armado. Entrar no palco rendeu likes, comentários e entrevistas em sites Gospel. E daí que era mais narrativa que verdade? A vaidade é o pecado mais legal.
Sobre viver de acordo com a Bíblia, sugiro essa reflexão do jornalista norte-americano A. J. Jacobs, autor do best seller "Um ano vivendo biblicamente". Parece anedótico e o livro é realmente muito divertido. Ele passou um ano vivendo sob obediência de todas as regras previstas na Bíblia, inclusive no Velho Testamento. Nessa jornada que causou dissabores deliciosos com a esposa, família e amigos, teve encontros curiosos e profundos com líderes religiosos. No vídeo, ele faz uma reflexão interessante para crentes e não crentes sobre o que realmente foi importante.
Ouvi de muitas pessoas que respeito tratar-se de heresia. Não vou discutir porque ainda não cheguei a esse nível de pureza espiritual em que enxergo heresia nos outros mais do que em mim. Mas é curioso que a ânsia de apontar o dedo aumente na exata medida da oportunidade de receber likes, crescer perfis e dar entrevistas compartilháveis em sites de fofocas gospel. Em outros casos seria assim? Nos que viralizam, seguramente. Nos demais, que não geram engajamento, o rigor afrouxa e é substituído pela camaradagem.
Os 15 segundos do sermão do pastor Ed Renê são injustificáveis, certo? Até pode ser, mas conto um causo. Dois queridos amigos presbiterianos, que agora tentam me convencer da justeza do cancelamento, agiam de forma diferente há 8 anos. Na época, o foco estava numa fala do pastor Marcos Pereira, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Numa escuta telefônica, dizia a uma fiel: "tô com saudades do seu rabo". Meus amigos tentaram me convencer de que a fala poderia ser relacionada ao peixe como símbolo do cristianismo, eu era precipitada ao condenar o pastor por meio do meu trabalho jornalístico.
Ocorre que agora foi uma coisa bem mais grave: um vídeo viral. Vídeo viral é a coisa mais grave que existe no mundo do cancelamento. O ritual é sempre o mesmo, seja direita ou esquerda, jovem ou velho, progressista ou conservador. Alguém faz uma fala duvidosa. É importante não haver certeza, impor a certeza pela pressão do grupo, exigir a aceitação da tese, atacar quem se contraponha. O segredo é começar isolando a ovelha do rebanho, sempre o bando atacar um só e bem publicamente.
Começa a virar uma espécie de jogo fazer novos materiais de ataques, às vezes já completamente desconectados do fato inicial. Vídeos com respostas a quem tenta defender a pessoa atacada também rendem muito engajamento. São todos com certezas contundentes, palavras fortes, gritos. A arena romana está de volta. O cérebro libera dopamina loucamente, é viciante, não há possibilidade de controle da sensação de prazer. Se bobear, vem o prazer supremo: dar entrevista para algum órgão de imprensa do nicho, seja lacração, patrulha identitária ou fofoca gospel.
Desde sempre evangélicos são ridicularizados sistematicamente e massacrados pela imprensa, pela elite cultural brasileira e pela lacração. Quando finalmente os evangélicos começam a ser reconhecidos porque conseguiram se impor, mostram não saber ser melhores que seus algozes. Poder inebria e vaidade ocupa no coração todo o lugar que é de Deus. O que justifica comemorar expulsão de um pastor com 30 anos de trabalho devido a 15 segundos de vídeo viral? "Ah, mas é heresia". Comemorar isso? Ficar feliz?
A única punição possível é expulsar? Essa é a pergunta que faço em todos os cancelamentos. Já pediram a minha cabeça na Gazeta do Povo por não apoiar o Escola sem Partido e por não apoiar o Sleeping Giants. As pessoas explicavam detalhadamente porque o não apoio deveria ser punido com demissão. Amigos e colegas calaram ruidosamente. Não eram, no entanto, movimentos cristãos. É triste viver num tempo tão impregnado pelo ódio que acolher parece inadequado até para alguns cristãos. Determinar o destino de alguém por 15 segundos de fala esquecendo 30 anos de ações é tão grave quanto recorrente.
Não entendi direito o que isso muda na prática para os fiéis. O pastor Ed Renê continua sendo batista tradicional e a IBAB continua sendo batista tradicional. Aliás, a igreja já era batista e já existia antes de criarem a tal Ordem que promoveu a expulsão. Vai ter culto no domingo, quem frequenta vai normalmente, segue o calendário do Advento. É, no entanto, um evento que mostra a força de contaminação da cultura do cancelamento. Até no seio evangélico o algoritmo infiltra o divisionismo e a necessidade de expulsar alguém de algum lugar como solução.
Da minha parte, agradeço a Deus pela decisão que tomei de jamais me batizar de novo ou tirar meus documentos religiosos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. É uma instituição milenar, que viu a ascensão e queda de todo tipo de cultura, poder e moda que acabam com o tempo. Eles saem expulsando gente por causa de vídeo viral? Não. Estou segura. Já o Sleeping Giants Gospel expulsa até pastor sério com 30 anos de trabalho. Avaliem o que seria de mim, com toda minha folha corrida de defeitos e pecados, se vissem 15 segundos de um vídeo meu. Oremos.
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