Manifestantes reunidos em ato pró-Bolsonaro no Centro Cívico, em Curitiba.| Foto: Reprodução/Instagram/Vereador Ezequias Barros
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Desde 2013 o brasileiro não sai da rua. Entramos nessa onda de "o gigante acordou" e a vida nos ensina que é melhor um pequenino esperto do que um gigante palerma. Acordou, ótimo, mas ainda não sabemos como usar a rua a nosso favor. O poder que emana das ruas afeta o poder estabelecido, mas os políticos de carreira parecem compreender bem melhor que nós como usar isso. É um aprendizado.

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Depois da passeata convocada pelo presidente da República, caminhoneiros trancam rodovias, alguns acreditam que foi decretado Estado de Sítio. Vivemos um momento tenso. O MBL e o Vem pra Rua marcaram há milênios uma passeata para o próximo domingo. Imaginei que todo o antibolsonarismo fosse pegar carona. Mas estão aí os Sommeliers de Passeata.

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Há alguns anos defendo que o Ministério do Trabalho regulamente a profissão de Passeateiro, precisa virar um código para o cara poder declarar imposto de renda dizendo ser um profissional desta categoria. É injusto que uma situação existente de fato seja ignorada nas ocasiões de direito. Tem muita gente que foi para a rua e nunca mais voltou nem sabe como parar de viver disso.

Neste momento, vejo que existe uma outra profissão de sucesso, o Sommelier de Passeata. Ele não organiza a própria passeata mas passa o dia na rede social criticando a passeata alheia como se estivesse militando por alguma coisa. É uma forma de ativismo bem mais interessante que a antiga, principalmente se ganhar dinheiro. Avalia ter de falar com aquele mundo de pobre, convencer a galera a ir para a rua, organizar carro de som, correr risco de apanhar da polícia. Muita mão de obra.

Durante muito tempo, pensei que a UNE tinha a fonte da juventude. Via pessoas mais velhas que eu agindo como se fossem estudantes universitários de primeira viagem. Dava inveja. Agora descobri que não está na UNE a fonte da juventude, está na instituição passeateiro. O arquétipo do passeateiro é o adolescente de 40 anos, o senhor de meia idade que vive como se tivesse 16 anos e é muito vida louca. Como diz meu amigo Claudio Manoel, o cara que ainda anda em turma e você nunca viu com mulher ao lado.

Por que um país de mais de 200 milhões de pessoas, formado em sua maioria por pais e mães de família, ouve adolescentes de 40 anos? Porque nos deixamos engolir emocionalmente pelo "nós x eles". Ah, mas não foi o meu lado que começou. Pouco importa, fomos todos arrastados para esta fantasia que divide pessoas sérias e glorifica agitadores. O Brasil todo, inclusive você e eu, meteu-se onde estamos hoje e só sairemos juntos.

Vi meio mundo dizendo que não conversa mais com quem foi à passeata a favor de Jair Bolsonaro. Há outros que recusam-se a marchar junto do MBL e, em vez de organizar alguma coisa, estão apenas pregando o cancelamento de quem for junto. Muitos não conversam com lulistas. Quem ganha com isso? Ainda não descobri porque não sabemos o que fazer com toda essa gente que não vale mais nada. Vamos mandar para Marte?

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O "nós x eles" somado aos algoritmos das redes sociais cria um movimento pela busca de pureza ideológica. Cada vez são mais os "eles" e menos os "nós". Não é algo que seja ideológico. Aliás, fosse ideológico mesmo, a tentativa seria conquistar adeptos, não cancelar pessoas. Nas redes, o "nós x eles" vira um potente instrumento de validação pessoal. Para ser reconhecida dentro do seu próprio grupo, a pessoa reforça os valores dele e fica cada vez mais indignada quando são contestados até internamente.

Estamos todos insatisfeitos por razões diferentes e é reconfortante pensar que a culpa é do nosso adversário, afinal sempre avisamos e lutamos contra isso. Ocorre que não tem adversário, somos todo um único grupo de brasileiros, de famílias brasileiras. Hoje é o resultado da combinação de ações e reações de todos nós. Precisamos ser adultos, assumir isso e focar na união do Brasil.

Eu vi hoje um monte de gente debochando de caminhoneiros gravando vídeos emocionados julgando que havia sido declarado Estado de Sítio. Confesso que fiquei de coração cortado pensando nessas famílias. São pais de família que passam necessidade, atravessam uma pandemia, uma crise econômica e não têm mais nada a que se agarrar na realidade. Restou só a desesperança. Tentam sentir que fazem algo, que são importantes, apelar ao pensamento mágico, ao heroísmo.

As pessoas precisam de sentido para a vida. Diante de vidas embrutecidas, feridas no caminho e frustrações pessoais, muitos recorrem hoje ao acolhimento de grupos políticos. Sentem-se verdadeiros heróis de cinema porque cancelaram alguém na internet, conseguiram a demissão de uma pessoa, defenderam seu político idolatrado ou demonstraram virtude ao mostrar como outra pessoa é inadequada. São minoria mas são muitos, são nossos irmãos e estamos juntos.

O "nós x eles" nos levou a pensar que a grande praga da humanidade é o nosso adversário político. Você sabe que não é. A pior praga é o povo do "ninguém presta". Todo mundo conhece alguém assim e sabe que azeda qualquer coisa em que se meta. Ninguém no mundo faz nada certo, todo mundo é burro ou mal intencionado, ninguém presta, só ele. Hoje, o "ninguém presta" passou a ser uma voz respeitada na política, uma atitude suicida de todos nós.

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O "ninguém presta" é um tipo social comum entre Passeateiros e Sommeliers de Passeata, mas é exceção na sociedade. Pessoas adultas sabem que todos erramos, às vezes tentando acertar e outras de propósito mesmo. Pessoas maravilhosas são capazes de atos terríveis e pessoas terríveis podem ser boas em muitos momentos. Somos complexos. É por isso que o relacionamento humano envolve necessariamente humildade, compreensão, perdão, misericórdia e redenção.

É tentador render-nos aos discursos de líderes fortes que solucionarão todos os nossos problemas e dizem exatamente aquilo que pensamos. Só que sabemos das consequências, isso nunca deu certo no Brasil. Quer dizer, para o povo nunca deu certo, para os poderosos construiu patrimônios monumentais. Vivemos num universo paralelo onde é possível rachar um país e conviver de forma separada. Sabemos tudo o que rejeitamos e o que não queremos. Resta saber o que o povo quer para o Brasil e como conduziremos juntos essa caminhada.