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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Stalkers, deu ruim: um avanço civilizatório no centenário de Clarice Lispector

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"O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós", disse Clarice Lispector, que faria 100 anos hoje. No centenário da mulher que falou com tanta profundidade em liberdade e sentimentos e também Dia Internacional dos Direitos Humanos, a Câmara dos Deputados vive um dia histórico de avanço civilizatório, a aprovação da criminalização do "stalking", projeto do deputado Fabio Trad. Antes de tudo, cumpre avisar aos navegantes: stalking NÃO é curtir foto antiga de ex na internet, a palavra é usada como analogia no caso.

Eu sou, em regra, contra a criação de novos tipos penais e o deputado Fabio Trad, professor de Direito, também. Esse caso específico é um daqueles em que a evolução do mundo e da sociedade torna necessário tipificar uma conduta. O pedido foi feito por um congresso de juízes em 2018, diante de casos em que eles, o Ministério Público e a polícia ficam de mãos atadas esperando o stalker matar sua vítima.

A técnica jurídica utilizada foi muito semelhante à atualização feita no Código Penal português. É importante saber que em todo mundo civilizado stalking já é crime e não apenas porque a maioria dos stalkings comete outros crimes e a maioria das vítimas deles ou morre ou sofre ataques, é porque a perseguição em si traz danos comprovados ao alvo. Foi criado um extra no artigo 147, Ameaça, que é o artigo 147-A:
Assédio obsessivo ou insidioso
147-A Assediar alguém, de forma reiterada, invadindo, limitando ou perturbando sua esfera de liberdade ou sua privacidade, de modo a infundir medo de morte, de lesão física ou a causar sofrimento emocional substancial.
Pena – reclusão, de dois a quatro anos e multa.
Assédio obsessivo ou insidioso qualificado
Pena – reclusão, de três a cinco anos e multa.
§2º Incorre na mesma pena do §1º aquele que praticar o assédio com uso de tecnologia informática para inclusão, alteração de dados ou usurpação de identidade digital da vítima.
§3º As penas previstas nesse artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

As penas mínimas colocadas pelo deputado Fabio Trad, aumentando o que veio do Senado, são a justa diferença entre a prisão ou soltura de um homem condenado, por exemplo, por espancar a mulher e depois perseguir em todos os lugares. Como geralmente as pessoas são condenadas pela pena mínima e, se ela for de até 4 anos, é muito difícil que fiquem presas, criou-se a situação do agressor que debocha da vítima. A vítima vai à delegacia, presta queixa, dá depoimento, faz tudo o que a lei manda e o agressor ri porque sabe que a pena será pagar uma cesta básica. Pior que isso: sabe que pode aterrorizar e constranger a vítima à vontade, não tem lei que o impeça. Agora acabou a brincadeira.

A maioria das vítimas de stalking é mulher, mas também há muitos homens vítimas. Quem não se lembra do icônico filme de Hollywood "Atração Fatal"? São crimes que as pessoas têm dificuldade de compreender porque fogem completamente à razoabilidade. Seres humanos equilibrados costumam pensar que stalkers têm tanto afeto pelas suas vítimas que não conseguem ficar longe. É o oposto. Eles sequer as consideram dignas de respeito humano, paz ou privacidade.

Há 6 peculiaridades do stalking, segundo o professor Damásio de Jesus: invasão da privacidade da vítima, repetição de atos, dano à integridade psicológica e emocional da vítima, alteração de seu modo de vida, restrição à sua liberdade de locomoção, lesão à sua reputação. Segundo o professor Damásio de Jesus, para conquistar aos poucos o controle sobre a vida da vítima o stalker pode lançar mão de estratégias adicionais de perseguição como chantagens, calúnias, difamações, espalhar boatos, enfim, tentar “criminalizar” o cotidiano da vítima perante as outras pessoas para diminuir suas chances de defesa. É absolutamente comum, principalmente em países que não punem a conduta, a minimização dela. Os criminosos agradecem.

Num artigo que fiz sobre o projeto aprovado hoje logo que ele foi apresentado, trouxe vários casos reais que, se fossem ficção, a gente diria que são forçados. Houve um condenado pelo juiz Rogério Vidal Cunha, de Foz do Iguaçu, que se empenhava em atormentar a gerente de um posto de gasolina com mensagens incessantes no celulare visitas ao trabalho dela. Fazia ameaças, sempre em linguagem velada. Flagrado, dizia que ela se insinuou, eles tinham algo e ela se arrependeu. É a reação mais comum desse tipo de criminoso quando flagrado - e geralmente funciona. Felizmente, o juiz não caiu nessa porque as provas eram contundentes.

 "São comportamentos insidiosos que buscam causar sofrimento às suas vítimas, são formas de constrangimento que ultrapassam qualquer senso de razoabilidade e de respeito, são, em essência, atos ilícitos que atingem o ser humano naquilo que lhe é mais caro, que é a sua tranquilidade de paz de espírito.”, diz a sentença de Rogério Vidal Cunha de condenação por danos morais. A lei brasileira já reconhecia até o prejuízo, só não punia quem o causa propositadamente, por prazer.

Conhecemos mais o stalking de pessoas que mantiveram um relacionamento amoroso e não se conformam com o rompimento. Mas trata-se de comportamento doentio e perverso, há stalkers de todo tipo, desde colegas de trabalho, superiores, familiares, colegas de escola, professores, alunos e até o stalker que nem conhece a vítima de lugar nenhum mas cismou com ela. Em todos os casos são causados distúrbios psicológicos, danos à saúde física, restrição de liberdade por necessidade de mudar rotinas O stalker não quer se aproximar da vítima, ele sente prazer com o sofrimento e a humilhação dela, com o poder que passa a exercer sobre diversos aspectos da vida dessa vítima.

Há 5 tipos catalogados de stalkers, bem conhecidos dos operadores do Direito. Todos têm desvios morais e de comportamento, são capazes de atrocidades e a maioria realmente leva isso às últimas consequências. No entanto, têm plena consciência de seus atos e controle sobre eles. Perseguem e torturam psicologicamente suas vítimas em busca de prazer com o sofrimento e exercício do poder, sabendo exatamente as consequências e o quanto estão errados. Fazem uma escolha avaliando riscos e, geralmente, as desculpas deles são aceitas porque a discussão do tema é nova no Brasil.

O projeto ainda tem de voltar para aprovação no Senado, onde já há acordo, antes de ir a sanção presidencial. Mas somente o fato de se deixar de tratar como perfumaria esse tipo de criminoso pode ser uma revolução para milhares de brasileiros que sofrem calados sem ter como se defender. Também será uma revolução para tantas autoridades que se frustram no dia a dia ao não ter os instrumentos legais para resolver uma situação que quase invariavelmente acaba em tragédia.

Com o avanço da tecnologia, os stalkers ganharam um mundo de novas ferramentas de trabalho, entre elas a criação de perfis falsos, instrumentos de vigilância, falsas ofertas de produtos, falsas entrevistas de emprego, contatos de forma anônima, gerador automático de número de telefone, apenas para ficar nas mais óbvias. Ultimamente, a Justiça vem aplicando a Lei Maria da Penha, em analogia, nos casos em que a vítima nunca nem viu o stalker. Antes, isso só se fazia quando tinham um relacionamento.

Agora, finalmente, o Congresso Nacional reconheceu que ninguém tem o direito de tirar a liberdade, a saúde, o equilíbrio psicológico e a liberdade dos outros para satisfazer desejos perversos. O novo tipo penal não serve para as vítimas que já foram pisoteadas por esses perversos, a lei só retroage em benefício do réu. Mas é importante que o sofrimento dessas pessoas seja reconhecido e não tenha sido em vão, será a base para evitar que tantos outros sofram. Não é sempre que temos o luxo de um avanço civilizatório no Brasil, precisamos comemorar.

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