O Brasil tem Três Poderes cujas instituições sempre funcionaram com excelência e parecem aprimorar-se mais a cada dia: Esculhambação, Gambiarra e Meme. Eu já desisti de analisar o que nos tornamos. As aventuras do Planalto - envolvendo o próprio presidente da República, o TSE, o Congresso, a imprensa e as redes sociais - seriam consideradas enredo forçado até numa comédia mexicana.
Difícil imaginar que tipo de ficção será capaz de competir com nossa realidade. O embate entre as instituições que representam os Três Poderes já incluem internautas-celebridade em CPI, Nizan Guanaes trabalhando de graça e um desfile de tanque do Exército na Esplanada. O que virá em seguida? Suplico que nenhum deles invente nudez pública, o que me obrigaria a virar vegetariana.
Estamos no meio de uma pandemia. Duvido que hoje exista um cidadão brasileiro que ficou livre do luto, da crise financeira e do abalo psicológico. Perdemos a conta dos mortos, os preços de comida estão impossíveis, a questão da vacinação ainda é um pesadelo para muitas famílias. Enquanto isso, o noticiário parece nos mostrar uma realidade paralela.
Num país sofrendo hoje e preocupado com o agora, parece que a atenção dos poderosos e das instituições é inteiramente devotada às eleições do ano que vem. Não pense que é só o agito copiado dos Estados Unidos misturando questões técnicas da votação com uma retórica de manipulação pelo medo. Enquanto a urna eletrônica é o centro dos debates, o Congresso tenta criar o "distritão", uma alteração completa na forma como escolhemos deputados e senadores.
Caso o "distritão" venha a passar, pouco importam a urna e o sistema de votação, será uma esculhambação completa. Aliás, sugeriria parar de debater urna e fazer eleições para o Legislativo por sorteio na TV ou gincana do Celso Portiolli. Em vez de quociente eleitoral, teríamos a eleição dos mais votados. Só que as coligações voltariam. Como isso funcionaria exatamente? Não conheço ninguém que arrisque dizer que sabe.
Quando a imprensa entra na dinâmica das redes sem perceber, como acontece agora, há uma tendência maior das autoridades à espetacularização. Esta semana ultrapassamos todos os níveis razoáveis da discussão sobre urna eletrônica. O debate já vinha sendo conduzido de forma absolutamente irresponsável. Mas agora passamos à era das demonstrações de força por causa da urna.
O TSE já apelou há pouco tempo para a força das celebridades ao falar de desinformação. O ministro Barroso fez live com Felipe Neto. Vários famosos ofereceram-se para fazer gratuitamente a campanha do tribunal contra fake news. Ocorre que agora famosos escalados na campanha anterior são contra a posição do TSE sobre urnas eletrônicas.
Ontem, foi anunciado que o publicitário Nizan Guanaes presenteará o Brasil com uma campanha falando da confiabilidade das urnas eletrônicas. Os jovens podem não entender o gesto, mas os mais velhos sim. Somos da geração dos publicitários-gênios, verdadeiras celebridades cultuadas pela mídia. É o caso de Nizan, Washington Olivetto e Roberto Duailibi, por exemplo. Fosse nos anos 1980 ou 1990, seria a melhor cartada.
Ocorre que isso está 40 anos atrás. O mundo muda. Os que duvidam do sistema de votação são majoritariamente de direita, alguns são simpatizantes do presidente, outros realmente acompanham o debate técnico e político há alguns anos. Nos grupos bolsonaristas já circula a informação de que Nizan Guanaes foi testemunha do ex-ministro José Dirceu na Lava Jato. Na dinâmica das redes que engoliu o jornalismo, pouco importa o que de fato ocorreu e se ele está certo ou errado. Importa que a imagem de isenção desmorona em um meme e a campanha é para ser sobre confiabilidade.
O TSE parece tão encurralado quanto a imprensa no jogo de factoides e gritaria do presidente Bolsonaro. O principal problema mostrado pela CPI da Covid é o trabalho informal de pessoas que só querem ajudar. A atuação junto ao Ministério da Saúde de empresários, pastores e amigos tinha tudo para dar errado e deu mesmo. Colaboração informal com governo é bônus sem ônus. A pessoa posa de caridosa mas ganha muito poder e, como não tem vínculo, não pode ser responsabilizada se der tudo errado. Será o caso de Nizan Guanaes no TSE, grande ideia.
Uma das formas mais eficientes de destruir instituições é apelar ao personalismo e à informalidade. O "deixa que eu mato no peito" passa a contar mais do que os procedimentos institucionais. Isso tem sido feito sistematicamente pelo Poder Executivo e é uma usina de problemas. Diversos ministros do STF já se pronunciaram neste sentido. Daí vem o TSE e pega a questão mais importante que enfrenta e joga no colo de um colaborador informal, Nizan Guanaes. Escola General Pazuello de gestão de crises. Agora vai.
Entendo que daí ficou difícil para o presidente Bolsonaro competir. Ele já tinha literalmente xingado a mãe do ministro Barroso semana passada. Na hora não deu em nada, mas conseguiu mais um degrauzinho na escada da subida de tom. E, obviamente, o monopólio de mais um ciclo de notícias. Um debate importantíssimo sobre democracia promovido pelo Renova BR na sexta-feira reuniu ministros do STF, FHC e Temer. A imprensa só perguntava a eles do xingamento e da urna eletrônica.
O debate entre os dois ex-presidentes trouxe uma visão interessante sobre liderança presidencial. Fernando Henrique lançou a tese de que a liderança de um presidente da República também passa por vocalizar aquilo que o povo está pensando. É um trabalho constante. Explica muito do sentimento das pessoas que votaram em Jair Bolsonaro e também a exaustão de boa parte delas. A sede pelo caos não é o que o cidadão brasileiro pede no momento. Mas ela tem sido estimulada pelas autoridades e pela imprensa, que parecem morar no Twitter e não no Brasil.
Às vezes morro de inveja de quem faz a estratégia de mídia do presidente. Em um único mandato, já houve duas aparições públicas em que Jair Bolsonaro pegou um anão no colo. Avalie ganhar para bolar isso e ter o status de trabalhar na Presidência da República. A resposta ao TSE e ao Congresso agora foi um desfile de tanques na Esplanada bem no dia da votação sobre urna eletrônica. De novo, monopolizou as redes e, por consequência, a imprensa.
"Ah, mas se um presidente inventa um desfile de tanques no meio da Esplanada dos Ministérios, é claro que isso é notícia". É óbvio que sim e que a cobertura precisa ser feita, é informação que interessa ao cidadão. Mas não é apenas isso que acontece na dinâmica das redes. A cada factoide, diversos jornalistas ignoram o próprio viés psicológico de confirmação e entram no movimento kamikaze de tirar a credibilidade da imprensa.
Um deputado aliado de Jair Bolsonaro postou uma foto de desfile militar da China - logo de onde - para dizer que estava orgulhoso ao ver os tanques na Esplanada. Desconfio que tenha buscado nas redes algo como "tanques em Formosa", a cidade onde foi feito o treinamento da Marinha e achou Formosa na China, a ilha entre Taiwan e o continente. Obviamente isso virou notícia. Caberia, quando muito, uma citação em uma notícia, mas ser manchete? Apoteose da superficialidade.
Chama-se "polarização emocional" aquela em que o vínculo do indivíduo com o próprio grupo resume-se a odiar o grupo adversário. Redes sociais vivem disso. Jornalistas quiseram mostrar como o deputado bolsonarista é burro e inferior e postaram o engano dele com a foto. Logo em seguida, a nata do jornalismo brasileiro postou um vídeo fake, pegadinha de um troll conhecidíssimo. Isso não é cobertura jornalística, é suicídio.
O troll postou um vídeo de um tanque tombando, usa um perfil com logomarca de empresa jornalística mas não esconde o nome, não finge ser a empresa jornalística. Usa o apelido que escolheu, portanto está dentro das regras do Twitter de perfil de paródia. Os jornalistas viram a postagem com empenho negacionista. Em vez de prestar a atenção no próprio viés psicológico de confirmação, fingiram que ele não existe e que foi feita uma análise objetiva. Repostaram em massa com críticas ao governo e às Forças Armadas.
O deputado deu uma desculpa besta para a troca da foto. As desculpas dos jornalistas pareciam demais com a dele, mas havia uma diferença, a de que eles haviam tirado sarro de outra pessoa por postar algo enganoso. Diferente do deputado, condenam o ato e com veemência. Em mais um ato de negacionismo, houve apelo em massa ao Twitter para derrubar a conta do perfil. Ocorreu.
Vi jornalistas argumentando que o Twitter não pode permitir uma conta com a foto do G1. A última Assembleia do Conselho de Direitos Humanos da ONU disse textualmente que plataforma de rede social moderar conteúdo é violação de Direitos Humanos. O que pode ou não ser dito depende das instituições de cada país. As redes sociais já moderam conteúdo - por algoritmo ou manualmente -, decidem o que será distribuído para quem e lucram mais do que os produtores de conteúdo.
Repare que a justificativa para tentar derrubar a conta é outro tiro pela culatra. O Twitter diz que violava as regras porque o nome - que não é a arroba da conta - precisava dizer textualmente que se trata de paródia ou homenagem para poder usar a logomarca do G1. Então os jornalistas assumiram que, se não avisar que é paródia, acreditam que a Rede Globo usa uma conta não verificada chamada COTORE? É absurdo. São jornalistas, podem enganar-se, todos erramos, mas essa justificativa é vergonhosa. Sai pior a emenda que o soneto.
A lógica das redes tem arrastado as instituições, o debate político e a cobertura política para um universo paralelo. Parece que a realidade pouco importa, vale mais saber qual sua carta do poder. Congresso vem com CPI, Barroso chama o Nizan, Bolsonaro enfileira tanque. Dominam o noticiário, missão cumprida. Resta saber qual será o efeito deste círculo vicioso. Instituições valem pelo que fazem, não pelo poder que têm contra outra instituição.
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