Nós somos o país da automedicação. Todos nós temos um amigo que passa semanalmente na farmácia para saber quais são as novidades. Quem não tem esse amigo é esse amigo. Agora, durante a pandemia, ficou evidente que nossa vocação para o curandeirismo é um luxo bem caro, principalmente em horas de aflição. Nós nem imaginamos como é o processo científico de contenção de uma pandemia e também não sabemos em quem acreditar.
Sempre ouvimos dizer que "de médico e louco todo mundo tem um pouco". A parte do médico era PIADA, mas o pessoal não captou. A crença de que sabemos que remédio tomar mistura-se a uma série de atendimentos sem comprovação científica que todos nós fazemos. Todos sim, admita. Eu também já melhorei de doença com corrente de oração, imposição de mãos, aromaterapia e até uma simpatia de botar uma couve embaixo da cama com uma tesoura nova. Tem tudo isso também no SUS. Que bom, né?
Eu não sou contra terapias alternativas até porque o efeito placebo é algo científico. Você com certeza conhece alguém que realmente melhorou com algo alternativo ou espiritual. A gente não sabe como acontece, mas sabe que acontece. Ocorre que isso não é medicina, uma prática clínica inteiramente fundamentada em estudos de cientistas. Quando misturamos estações criamos uma confusão imensa.
Trabalhei em campo na equipe que eliminou a pólio em Angola, convivemos na zona do Ebola e de outras doenças misteriosas ainda não catalogadas. Confesso que assustei ao ver médicos clínicos - que não são cientistas - aqui no Brasil agindo como se pudessem formular hipóteses científicas freestyle e aplicar nas pessoas às vezes sem que elas ou as famílias soubessem. A cultura em que convivem num mesmo espaço cirurgia do cérebro e biodança não deu certo.
"Ah, mas vai dizer que em Angola não tem gambiarra e automedicação?". Claro que tem e bem mais alternativa do que por aqui. Ocorre que há uma distinção clara entre o que é procedimento médico e o que é fé ou tradição. A pandemia esfregou na nossa cara que nem os médicos sabem muito bem isso por aqui. E nossa política de saúde reforça o ambiente em que é possível confundir medicina com tradição, heroísmo, magia e fé. Sou contra a proibição de terapias alternativas, mas oferecer pelo SUS é uma piada de mau gosto e contra o que é feito no mundo civilizado.
Vamos a um exemplo para criar contenda: homeopatia. Aqui tem muita gente que ainda pensa ser ciência. Descobriu-se há mais de uma década que os efeitos da homeopatia não são melhores do que os efeitos de ingerir placebo. As pessoas deixaram de procurar homeopatas? Claro que não. Se você melhora, pouco importa se aquilo funciona mesmo ou se foi o placebo. Deu certo uma vez, você procura de novo. Isso não quer dizer abandonar tratamentos médicos em nome de terapias alternativas.
O que aconteceu em países como Reino Unido, França, Estados Unidos, Bélgica, Áustria, Suíça e vários outros? Quando descobriu-se não haver prova científica de que homeopatia funciona mais que placebo, ela foi cortada do serviço público. Nem é oferecida no serviço público e também não é reembolsada por ele, possibilidade que existe, por exemplo, na França. As associações de especialidades homeopatas brigaram muito, mas ninguém voltou atrás. Não se exige nem especialização para poder trabalhar com homeopatia mais, já que não é uma especialidade científica, é uma prática tradicional ainda em estudo.
Gosto da frase do Millôr Fernandes: "Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil". Em 2017, o Reino Unido baniu a homeopatia do serviço público de saúde e passou a dizer oficialmente que é uma prática tradicional e complementar, não médica e que não requer especialização. Neste mesmo ano, o SUS passou a oferecer 14 terapias alternativas, entre elas a "Dança Circular". No ano seguinte, adicionaria outras 10. Daqui a pouco vai ter médico do SUS encaminhando para tarô e leitura da borra de café.
Eu nem estou dizendo que essas coisas não funcionem ou devam ser proibidas. A questão é de onde surge a ideia de colocar no SUS em um país com tantos problemas não só de atendimento mas também de entendimento de Saúde Pública. Sou favorável à permissão para que pacientes sejam atendidos até dentro do hospital por terapias complementares alternativa. Digo com a mesma convicção que defendo a importância de serviços religiosos em ambiente hospitalar.
Todos sabem nitidamente a diferença de funções entre um médico de UTI e o capelão do hospital. A não ser minha falecida avó, que defendia a plenos pulmões a comprovação científica de práticas kardecistas. Nunca fiquei preocupada porque jamais encontrei médico que embarcasse nessa teoria. Mas agora admite-se que nosso sistema de saúde pública, o SUS, ofereça no rol de tratamentos aqueles alternativos.
Vou fazer aqui a listagem de todas as terapias alternativas que são oferecidas pelo SUS para que você marque quantas já experimentou. Adianto que eu já usei 17 só dessa lista, fora outras obscuras. Sempre soube que não era medicina e nunca troquei a medicina por elas, são coisas diferentes.
Acupuntura
Homeopatia
Fitoterapia
Antroposofia
Termalismo
Arteterapia
Ayurveda
Biodança
Dança Circular
Meditação
Musicoterapia
Naturopatia
Osteopatia
Quiropraxia
Reflexoterapia
Reiki
Shantala
Terapia Comunitária Integrativa
Yoga
Apiterapia
Aromaterapia
Bioenergética
Constelação familiar (grifo meu)
Cromoterapia
Geoterapia
Hipnoterapia
Imposição de mãos
Ozonioterapia
Terapia de Florais
Grifei a Constelação Familiar por considerar ser um caso muito específico em que partes da terapia colidem com direitos fundamentais e a nossa legislação. Várias das outras terapias, como meditação, shantala, ioga, arteterapia, aromaterapia e musicoterapia são largamente utilizadas como complemento à medicina no mundo todo. Trazem bem estar a muitos dos que tentam. Ocorre que elas não defendem coisas como "não julgar moralmente" estupro dentro da família. Isso a Constelação Familiar faz. E a gente oferece no SUS.
Aqui um vídeo postado por uma cientista, Gabriela Bailas, PhD em Física Teórica de Partículas e especializada em Neurociência e Comportamento. O "terapeuta" a dizer isso é o criador da Constelação Familiar, usada como se fosse ciência pelo SUS e também pelo Poder Judiciário. Até eu fui enganada por isso no início, quando o Judiciário começou a usar. Achei que era ciência e depois amigos cientistas me ajudaram a cair na real.
Nós somos os país da gambiarra. O SUS é um bom projeto, mas ele só funciona no dia em que a gente levar a sério Saúde Pública e dignidade humana. É salutar ter oferta de terapias alternativas em centros comunitários, culturais, de bem estar. Mas as pessoas precisam saber o que é medicina e ter acesso a ela. A maioria dos brasileiros teve experiências ruins de atendimento médico. Vão fazer terapia alternativa só na prevenção, como preconizam os manuais do SUS, ou trocar uma pela outra?
É um direito do cidadão fazer o que bem entender diante da doença. Pode tratar-se, pode resolver não enfrentar um tratamento traumático, pode abandonar um tratamento tradicional e tentar um experimental controverso, pode decidir virar cobaia de promessa de milagre caso seja desenganado. A questão é que essa decisão deve ser com base em informações claras, não na confusão entre o que é medicina e o que é boa intenção.
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