"Só há duas coisas no mundo que eu não posso suportar. Pessoas que são intolerantes com outras culturas e os holandeses.", Austin Powers. Creio que esta frase é o melhor resumo sobre posicionamentos recentes de nossas autoridades-mariposa sobre internet, principalmente redes sociais e liberdade de expressão.
Mariposa é uma expressão tão antiga quando Austin Powers, espião congelado na década de 1960 e descongelado em 1990 para tentar controlar um mundo que não conseguia entender. É exatamente o que fazem o Ministério Público e o TSE, mais precisamente a porção mariposa, a que é atraída de maneira irresistível pela luz. No caso, pelas câmeras.
A bancada dos entrevistados preferenciais da Justiça não passa um dia sem tomar uma decisão do nível Austin Powers sobre redes sociais. Poderiam se atualizar sobre o mundo em que vivem com os técnicos que nós já pagamos para isso? Claro. Mas a arrogância não deixa. Então agem como se entendessem de internet e redes, sendo engolidas dia a dia por quem entende de verdade, as Big Techs. Arrogância é bicho que come o dono.
Li no blog do meu amigo Fausto Macedo um furo de reportagem sobre o Ministério Público do Estado de São Paulo. O IFood terá de se explicar sobre a atuação no caso do "breque dos apps". A empresa contratou uma agência de publicidade para, por meio de perfis manipulados, inflar sua posição na queda de braço com entregadores.
Você pode achar isso moral ou imoral. Ocorre que eu já fiz esse mesmo serviço de inflar redes para o Ministério Público do Estado de São Paulo. Não me arrependo porque tinha filho muito pequeno e precisava do dinheiro. Confesso que me arrependo de ter feito bem feito. Numa discussão objetiva, ficaria claro que a campanha era corporativista e pela manutenção de privilégios. Então, usamos um tom moralista e conspiracionista para inflar as redes sociais. Foi um sucesso. O Ministério Público precisa decidir se é certo ou errado fazer isso.
Fica difícil ser super certo e dar até entrevista coletiva à imprensa quando é pelo MP e mandar investigar quando é por outras empresas. Como recordar é viver, voltemos ao ano de 2013 às vésperas do aniversário de 2 anos do meu filho. Senta que lá vem história.
Eu era Diretora de Comunicação para a América Latina da Change.org, uma empresa inovadora de formação de grupos de pressão via internet, listada como B-Corp em Wall Street. O fundador, Ben Rattray, viria a ser depois uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. O encarregado global de campanhas era Paul Hilder, que depois fez o documentário "Privacidade Hackeada", revelando ao mundo o escândalo da Cambridge Analytica. Havia na equipe grandes estrelas atuais do ativismo digital e do combate à desinformação.
De certa forma, estamos tentando alertar quem ainda está deslumbrado com o universo digital do estrago que ele faz quando a gente acha que sabe como ele funciona mas não sabe direito. É exatamente isso o que fazíamos dez anos atrás, até que todo mundo quebrou a cara, tomou vergonha, foi estudar e hoje fica pregando feito Cassandra.
Voltemos a 2013. Havia uma proposta de emenda constitucional a ser votada, a PEC 37, que tiraria o poder de investigação do Ministério Público. Trata-se de mais um exemplo de jabuticaba, uma coisa que sabe Deus como enfiaram na Constituição, só existe por aqui e sempre deu problema. Um amigo no Ministério Público teve a ideia de pedir ajuda à Change.org, que obviamente era menosprezada ou ridicularizada pelos inteligentinhos da imprensa e da política. É claro que eu fui ajudar nossos bravos guerreiros. Fiz exatamente o que o IFood pagou para alguém fazer, mas foi pro bono.
As campanhas que você vê na plataforma da Change.org são abertas. Qualquer um pode ir lá e criar o que bem entender, desde que não seja crime. Inclusive há abaixo-assinados opostos entre si na plataforma, não há problema. Naquele início de operações, as pessoas ainda não entendiam o poder dos grupos de pressão via internet e o mercado de coleta de dados via ativismo. Ter casos de grande impacto era importante para a empresa, por isso minha decisão de fazer o pro bono para o MPSP, que tem verba. Compensava financeiramente adiante.
Li em detalhes a PEC 37, consultei com ex-professores e fontes no Judiciário e no próprio Ministério Público. Não podia correr o risco de um debate sensato e objetivo sobre o tema, o MP ia perder de lavada. A decisão foi por uma campanha puramente emocional. Era a "PEC da Impunidade" com o slogan "a quem interessa impedir que o MP investigue?", ou "a quem interessa calar o MP?" sempre com fotos atiçando a imaginação.
Então fizemos cartazes com afirmações completamente vagas e moralistas, sugerindo uma luta do bem contra o mal. O MP era o lado do bem, prestes a ser sufocado por forças do mal. E daí havia os cartazes, que sempre são coisa de estudantada e de pobre, aparecendo nas mãos dos promotores e procuradores. Apostamos que os deputados reproduziriam a cena e isso teria interferência nos votos. Teve. O movimento contra a PEC da impunidade ganhou o Brasil. Tivemos quase 500 mil assinaturas, o que era absolutamente extraordinário há 10 anos.
A vida em redes é movida por emoção. Repare bem na foto e veja que coisa linda e suprapartidária conseguimos. Aí tem grandes amigos que conservo até hoje do PT, PSDB, PMDB, centrão, direita, esquerda. Basta você lançar o conceito de "impunidade" e a provocação "a quem interessa?" que o brasileiro morde a isca. Mordeu. Peço desculpas a deputados como o delegado Lourival Mendes que tentaram debater objetivamente e foram tratorados pela estratégia.
Ninguém planejou que houvesse perverso ameaçando de morte quem se pusesse contra a PEC da Impunidade, mas aprendemos que é um fator a se levar em conta sempre. A vida em redes e a sociedade digital trazem essa responsabilidade. Os perversos aguardam oportunidades de justificativa moral para realizar as perversidades com as quais sentem prazer. Isso todo mundo no poder sabe faz esse tempo todo, uns 10 anos, mas fingir não saber ainda cola.
E onde entra a estratégia do IFood? Eu participei pessoalmente. Organizávamos os chamados "tuitaços", coisa que ainda se vende hoje. Havia um determinado horário para tuitar com uma hashtag - no caso #PECdaImpunidade - e ela chegaria aos Trending Topics. Como chegaria? Inflando artificialmente o número de participantes. O Ministério Público quer explicações de uma empresa sobre uma prática que ele próprio adota há 10 anos, é isso? Interessante.
Você pode alegar que é imoral, a empresa tinha perfis falsos, isso foi feito por especialistas. Pode ser imoral mas não é ilegal. Exatamente como foi imoral mas não foi ilegal o que eu fiz para o Ministério Público, que incluiu também criação de perfis extras. É assim que chegávamos à imprensa e dávamos à PEC 37, que interessava mais ao MP que à sociedade, um apelo público e de urgência que ela jamais teve. Funcionou.
No caso do IFood, o MP alega que a empresa, ao usar a distorção do debate público a seu favor, estaria tirando direitos dos trabalhadores. Então o MP admite que nossa ação no passado também tirou direitos de todo mundo que foi investigado desde então, principalmente de quem foi eviscerado na imprensa para ser depois inocentado. Ou a gente estava certo? Ou está todo mundo certo ou todo mundo errado nessa.
Tem mais um ponto aí. Quem garante que os trabalhadores também não foram mobilizados por um pequeno grupo usando recursos de redes semelhantes aos do IFood? Seria imoral ou seria moral porque são o lado mais fraco da relação? Eu sinceramente já me perdi na história da moralidade, mas uma coisa eu sei: a Justiça define o que está dentro ou fora da lei, não da moral. E aí chegamos ao caso TSE x Whatsapp que é outra patriotada estilo Austin Powers.
A atuação do Tribunal Superior Eleitoral na regulação da utilização da internet na política parece feita sob medida para o crescimento do populismo e da atuação dos iliberais. É completamente pautada no divisionismo e no autoritarismo individual, que acaba por erodir a confiança e a eficácia dos poderes estabelecidos.
A questão do divisionismo começa em ignorar o Marco Civil da Internet e entender a internet como brasileira, não como um fenômeno mundial. Uma inovação trazida pelo WhatsApp não é vista pela nossa legislação como algo que a gente possa botar um muro e decidir que só aqui é diferente. Entendemos o contexto mundial e os limites reais da imposição de regras à moda antiga pelos poderes estabelecidos.
E por que se faz isso? Para garantir que os Três Poderes continuem exercendo poder. O que fez o TSE? Foi negociar diretamente com o WhatsApp que ele não lance só no Brasil uma funcionalidade que será lançada no mundo todo. Qual o primeiro resultado? O Judiciário não manda mais na empresa, pede. Parabéns ao WhatsApp pela graça alcançada. Até agora, poder se tomava. Ganharam de bandeja.
Ao se agachar diante de um particular em quem deveria mandar, o TSE consegue ainda um outro efeito colateral, fomentar o divisionismo. O que realmente vai acontecer caso a ferramenta de grupos seja lançada durante as eleições? Você pode supor, mas saber mesmo nós não sabemos. Pode ser que fomente uma avalanche de Fake News porque brasileiro ama ser otário. Pode ser que não mude nada porque a gente já recebe essa porcariada o dia todo, será a mesma porcaria.
Se não tem um teste para indicar o que realmente acontece, como se decide qual a melhor medida a tomar? Pelo iliberalismo: você está do lado do bem ou do mal? Obviamente que é o do bem e o outro lado é o do mal. Suponhamos que você seja bolsonarista roxo, vai dizer que é censura e contra a liberdade de expressão. Suponhamos que você seja petista roxo, vai dizer que é necessário para conter a desinformação. Podem estar os dois certos ou os dois errados, não sabemos. É uma suposição com base em julgamento moral do outro grupo, nada além disso.
Como eu já contei a vocês no caso da PEC 37, no qual tive participação ativa, nada melhor do que arrumar um moinho de vento para o povo combater na internet. O mundo do marketing vive disso há anos. Eu, por exemplo, já chorei com muita propaganda. Agora veremos exatamente o mesmo feito pelos políticos, que sabem usar esses mecanismos muito melhor que o Ministério Público, o Judiciário e a imprensa.
De efeito prático do agachamento do TSE diante do WhatsApp temos ainda um problema de marco regulatório que pode se estender a todas as inovações. Até agora, parecíamos ter uma lógica. Ao cidadão é dado fazer tudo o que a lei não proíbe enquanto ao funcionário público só é dado fazer o que a lei exige. Dessa forma, as empresas faziam as inovações porque podem. Quando elas geram consequências que exigem intervenção governamental, surgem regras específicas. Grosso modo, funciona assim no mundo todo.
Regras específicas podem ser criadas pelo Poder Legislativo, por Agências Reguladoras, por empresas fiscalizadoras, pelo Poder Executivo. Depende do caso porque depende do efeito específico sobre o cidadão que se pretende regular, não da tecnologia em si. Sempre a lógica é a de que o Poder Público manda na empresa, garante as regras de funcionamento de um país soberano.
Agora o TSE mudou isso? Não existe o ministro fulaninho pediu para o WhatsApp, não há informalidade quando se é ministro de uma Corte Superior. Esse tipo de relação é feita em nome da Corte e na lógica de que faz parte do rol de ações que o funcionário público - no caso, o ministro - tem a obrigação legal de fazer. Se um ministro tiver, por razões desconhecidas, a impressão de que um produto de inovação pode ser do mal, um Tribunal Superior interfere para que a empresa adie o lançamento no país.
Toda argumentação que seja feita em torno do pedido de um ministro do TSE para adiar lançamento de tecnologia não testada será necessariamente moralista. Ou ele é do mal ou tenta evitar um mal maior. Ocorre que nem ele trabalha nem a gente vive em filme da Marvel. Talvez a gente viva num filme do Austin Powers e a mal informada sou eu.
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