A bolha progressista norte-americana foi à loucura nas redes sociais. Acadêmicos renomados e reconhecidos uniram-se a colegas cancelados pela patrulha ideológica e lançaram uma universidade, a UATX. A proposta da nova instituição é desfazer a confusão que foi montada entre conhecimento e ideologia. Universidades têm espaço para as duas coisas, desde que não se confunda uma com a outra.
Traduzo o vídeo:
"Nós cansamos de esperar que as universidades norte-americanas se consertem.
Então, nós estamos começando uma nova.
Uma universidade dedicada à busca da verdade.
À busca sem medo da verdade."
A parte mais importante desse vídeo são os nomes. Quem são essas pessoas que intitulam-se "nós". Entre eles, há dois dos meus autores preferidos. Um que cito aqui sempre, o psicólogo Jonathan Haidt. A outra é a lenda viva da Economia, Deirdre McCloskey. Creio que, entre eles, haverá agora ou nos próximos passos, alguns dos seus preferidos também.Uma plataforma que monitorou ataques à liberdade de expressão nos Estados Unidos mostrou aumento de 450% nos casos de censura nos últimos anos.
O vídeo publicado pela UATX prova uma tese que eu inventei sem nenhuma base, apenas por delírio mesmo, anos atrás. A patrulha identitária é uma espécie de Midas ao contrário: transforma em ouro tudo o que ataca. Um perfil novo no Twitter, com pouco mais de 5 mil seguidores, alcançou quase um milhão de visualizações trazidas por gente que vive de diminuir e esculhambar os outros. Claro que já foi taxado de transfóbico, misógino e racista.
Não é apenas mais uma instituição, mas uma ideia nova de universidade, que não seja refém do domínio de grupos autoritários que silenciam e esmagam discordantes. Além disso, pretende-se construir o ambiente universitário em torno do conhecimento e não da estrutura burocrática de um empreendimento desses. Universidades são centenárias e, muitas vezes, preservam mecanismos que não fazem mais sentido no tempo atual.
Niall Ferguson, fellow em Stanford e professor de história que já deu aulas em Harvard, Oxford e New York University publicou hoje em sua coluna na Bloomberg um texto duro e crítico sobre a infecção do ambiente universitário pelos justiceiros sociais. "Se você gostou de 'The Chair' da Netflix - uma representação leve e engraçada de um Departamento de Inglês sujeito a crises em uma faculdade imaginária da Ivy League - você claramente não trabalha no ensino superior. O estado da universidade é tão podre que não tem como rir.", iniciou.
Os comentários feitos nas postagens da UATX e dos acadêmicos confirmam o que eles falam de doutrinação, virulência, cancelamento, sinalização de virtude, agressividade, comportamento de manada, incentivo ao silenciamento. O grupo de acadêmicos é brilhante e ideologicamente diverso. Niall Ferguson advertia já antes do lançamento: "não será diverso o suficiente". Bingo. Estão sendo chamados de -extrema-direita, trumpistas, universidade do tea party, universidade do QAnon e daí para baixo.
É interessante que o grupo não pretende retomar a era dourada das universidades. Até porque elas foram fundadas como instituições religiosas e rígidas, abertas a muito poucas famílias no mundo. "Somente a partir do século 19 a academia se tornou verdadeiramente secularizada e profissional, com o declínio das exigências religiosas, a ascensão à proeminência das ciências naturais, a disseminação do sistema alemão de promoção acadêmica (do doutorado em etapas até o catedrático) e a proliferação de periódicos acadêmicos com base na revisão por pares", explica o historiador em seu artigo.
A seita do justiçamento social tem um comportamento muito mais parecido com o dos grupos religiosos dos primórdios das instituições universitárias do que com o secularismo introduzido no século XIX. A busca do conhecimento só é válida respeitando determinados axiomas considerados sagrados pelo grupo. Quem for dissonante terá a vida completamente destruída, com penas muito maiores e abrangentes que as previstas em lei para crimes de sangue, por exemplo.
O secularismo não blindou as universidades alemãs de ideologias perversas. "As mesmas universidades alemãs que lideraram o mundo em tantos campos por volta de 1900 tornaram-se ajudantes entusiastas dos nazistas de maneiras que revelaram os perigos de uma prática acadêmica dissociada da ética cristã e muito intimamente ligada ao Estado", escreve o historiador. Lembra alguma situação que você conhece?
Outro dia fiz um artigo bem pesado mostrando como práticas de comunicação digital são herança do que há de mais sombrio na alma humana. O capítulo VI de Mein Kampf, a propaganda da guerra, foi adaptado para a era da internet. É executado como um ballet diante dos nossos olhos diariamente e passa a ser tratado como normal. O que nos salva não é ideologia, ser do bem nem estar torcendo pelo político certo ou do lado certo da história. Somos salvos pelos nossos princípios.
"A UATX está comprometida com a liberdade de investigação como pré-condição para a busca da verdade. Outros abandonaram esta missão central da universidade. É a base da nossa escola e a razão pela qual acreditamos que os acadêmicos e alunos mais curiosos e inovadores irão querer se juntar a nós", diz o site da UATX, que inicia suas atividades ano que vem. Ainda não há um curso de graduação, mas um curso de verão com o nome "Estudos Proibidos".
Perto do ambiente acadêmico de hoje, começo a achar que os anos 1980 e 1990 eram liberais. Aliás, já pedi desculpas a Jesus várias vezes por considerar rígida demais - e até meio autoritária - dona Diva, bedel do colégio das madres passionistas onde cursei o ensino fundamental. Ela andava com uma régua de madeira de 1 metro na mão. No primeiro grupo de whatsapp lacrador em que me enfiaram, já comecei a achar que ela era equilibrada e democrática.
"QUASE TODAS AS UNIVERSIDADES DIZEM QUE REPRESENTA LIBERDADE DE INQUÉRITO. O QUE HÁ DE DIFERENTE NA SUA UNIVERSIDADE?
Falamos sério.
Estamos alarmados com o iliberalismo e a censura prevalecentes nas universidades mais prestigiosas da América e com o que isso pressagia para o país. Mas sabemos que muitos de nós ainda acreditam no propósito central do ensino superior, a busca da verdade. É por isso que estamos construindo a UATX. Em cada estágio da construção de nossa universidade - da contratação de pessoal à construção do currículo e à admissão de cada aluno e corpo docente - devemos nos perguntar: "Estamos servindo à busca do conhecimento?" Se a resposta for não, então não terá lugar na nossa universidade", diz o site.
Sobre o método de ensino, tem algo bem interessante. Pelos nomes envolvidos, gente que faz estudos de ponta em suas áreas - incluindo dados, tecnologia, neurologia -, a gente já imagina que as aulas são no metaverso, né? Pois bem, são na sala de aula, com papel, caneta, debate olho no olho e conversas em grupo. Haverá conteúdo online, mas disponível grátis para quem não pode cursar.
"Nossas aulas serão tradicionais, presenciais, com uma mistura de palestra, discussão em seminário e pequenas sessões tutoriais. Também acreditamos que as experiências educacionais são mais ricas quando são estendidas para fora de um ambiente de aprendizagem formal e, portanto, devemos integrar as experiências de aprendizagem imersivas em nosso currículo. Nossas salas de aula serão locais onde 1) todas as opiniões serão ouvidas e 2) todas as opiniões devem ser apoiadas por evidências", informa a UATX.
Vocês já imaginaram o que iria acontecer num mundo em que todas as opiniões são ouvidas mas só é opinião o que é apoiado por evidências? Isso mesmo, ia quebrar tudo quanto é rede social. Tempos atrás fiz um ebook chamado Tratamento de Choque em que proponho essa divisão:
Fato - algo objetivo e comprovável, que é possível comprovar.
Opinião - avaliação por alguém treinado no tema que já conhece os fatos.
Sensação - freestyle, o que vier à cabeça ou ao coração.
Temos a liberdade para falar tudo e expressar fatos, opiniões e sensações, não está aí o problema. A confusão começa quando confundimos sensações com opiniões e até com fatos. Nas universidades, a crise é a mesma. Existe lugar para ideologia e para conhecimento. Afinal, quem nunca militou pesado para irritar os pais que atire a primeira pedra. O problema é confundir isso com produção do conhecimento. Será um primeiro passo para fora do obscurantismo? Espero que sim.
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