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A história de Gabriela, Thallys e Santiago parecia mais um enredo trágico decorrente do apego à "Fila da Adoção". Instituída com a melhor das intenções, acabou transformada num fim em si mesma e sobrepondo tanto o interesse das crianças quanto a dignidade humana na dinâmica da formação das famílias. Relatei diversos casos concretos num artigo semana passada sobre o projeto de Adoção Humanizada da deputada Janaína Paschoal. Eis que, no dia seguinte, me deparo com mais uma mãe chorando em desespero pelas redes sociais.
Gabi Arandela, influencer e empreendedora na área de decoração, entrou na fila da adoção em 2018, com o marido Thallys. Chegou o dia da ligação tão esperada e receberam o filho, um menininho, Santiago. Depois de 20 dias, o Judiciário percebeu um erro burocrático no processo de adoção. Foi determinada busca e apreensão do bebê, que foi levado de volta ao abrigo para ser encaminhado a outra família. Derrotada na burocracia, a mãe usou o Instagram para contar sua história e chegou à imprensa de todo o país.
Para mãe e pai não tem "apenas 20 dias". A partir do momento em que a consciência da existência do seu filho cala no coração, o vínculo é para sempre. Retirar um bebê que já tem 20 dias de vínculo com o casal que pretende adotá-lo e fez tudo dentro das regras é uma medida radical. Seria no melhor interesse da criança? É o que foi entendido, já que havia um problema formal no processo de adoção.
Quando alguém entra na fila da adoção, necessariamente precisa fazer um "curso" oferecido na Justiça, que esclarece os detalhes de todo o processo. Isso é documentado por um diploma, que precisa ser anexado ao processo de adoção. O casal fez o curso em 2018 mas, por alguma razão, o diploma de Gabriela nunca foi emitido pelo Fórum em Fortaleza. Ela tentou conseguir o documento diversas vezes, sem sucesso. A opção de fazer novamente o curso colocaria o casal várias posições atrás na fila de adoção.
Finalmente receberam a tão sonhada ligação informando que seriam pais novamente. Foram buscar a criança no abrigo, deram a ele o nome de Santiago. Três semanas depois, o casal foi chamado ao Fórum. O juiz confessou que deu andamento ao caso porque errou, não havia percebido a falta do certificado do curso necessário ao processo de adoção. Desta forma, todos os atos do processo eram ilegais e o único jeito era levar a criança de volta ao abrigo e passar a outro casal.
"O Juiz mandou me chamar. Fui lá e ele disse que queria me pedir desculpas e me dar duas notícias: uma boa e uma ruim. A boa era que eu ia voltar para fila de adoção e ia concorrer a outras crianças. E a ruim era que eu ia ter que devolver o meu filho. Eu disse que não aceitava. Ele me pediu desculpas e disse que tinha sido um erro dele. Ele não viu que tava faltando esse documento, esse certificado. Fui conversar com a promotora, desesperada. Ela disse que não podia fazer nada por mim, só sentar e chorar", contou Gabriela em uma live no Instagram.
Para muitos operadores do Direito, a "Fila da Adoção" passou a ser a prioridade do processo, acima do melhor interesse da criança e da dignidade humana. É o que ocorreu neste caso. A influencer relatou que a promotora da cidade entendia que é função dela lutar com todas as forças pela Fila: "Ela disse assim: eu não estou aqui como mãe, estou como promotora. Em nenhum momento, posso lhe ameaçar, mas vou ser uma bruxa na sua vida. Eu falei: você não vai ser uma bruxa, você está sendo. A coordenadora do abrigo é minha testemunha, porque ela viu tudo isso. Ela disse ainda: se você ganhar aqui em Tianguá, vou recorrer para Fortaleza. Se em Fortaleza você ganhar, eu recorro para Brasília. Se você ganhar, vou entrar com um pedido de indenização porque você furou a fila e vai ter que ser pago uma quantia 'x' para o abrigo. Eu não tenho culpa, esse erro foi do Judiciário. Eu fiz esse curso, tenho como comprovar. E aí logo depois, consegui o certificado do curso. A moça de Fortaleza diz que não sabe porque eu não recebi o certificado. Acredito que Deus não colocou o meu filho no meu caminho a toa", relatou a influencer em uma live.
Mas receber o documento não colocou um ponto final no pesadelo. Gabriela e Thallys recorreram pedindo a guarda de Santiago, mas o juiz deu uma sentença negando e colocando o casal no final da fila da adoção, com 6 outros casais na frente deles. Ter o documento não mudaria a situação criada pela falta do documento porque a sentença já estava dada e, portanto, outros casais passaram a ter o direito de ficar com Santiago. O documento pedido pelo Judiciário é emitido pelo próprio Judiciário.
De início, dois casais informaram Gabriela e Thallys que abririam mão do direito de adotar Santiago. Havia ainda mais 4 na fila e um deles queria muito o bebê. O Ministério Público continuava alegando que a prioridade era a fila. Dizia que o casal ganhou judicialmente o direito de conviver para estabelecer vínculo, mas não a guarda de Santiago. Quanto à questão do documento, a explicação é que ele não corrigiu o lugar na fila. "Observe-se que, mesmo com a regularização da documentação dos pretendentes à adoção e posterior reinclusão ao Cadastro Nacional de Adoção, a decisão de destituição do poder familiar do bebê foi exarada no dia 15/12/2020, de forma que a guarda apenas poderia ter sido concedida após esta data, momento em que o casal já não mais ocupava posição superior no cadastro, constando como o sexto na fila de adoção.", explicou o Ministério Público.
Também há uma explicação que eu não entendi muito bem. Segundo o Ministério Público, a criança foi retirada do casal porque o MP precisa zelar pelo melhor interesse da criança e evitar casos de devolução nas adoções.
"Urge ainda salientar acerca da importância do correto e legal seguimento do trâmite de adoção e, em que pese o Ministério Público se solidarizar com a dor dos pretendentes, é necessário que o Órgão Ministerial, como fiscal da lei, aja conforme os preceitos legais, tendo em vista ainda que enquanto órgão com atribuição de zelar pela obediência da ordem cronológica do cadastro de adoção e do melhor interesse da criança (trabalhar para que seja entregue apenas a pessoa formalmente habilitada, evitando inclusive futuras e costumeiras “devoluções” das crianças que geram traumas irreparáveis)", afirma o Ministério Público do Estado do Ceará.
Há dois momentos diferentes no processo de adoção. O primeiro é a autorização judicial para a convivência entre adotantes e a criança. É um documento emitido pelo juiz que autoriza visitas ao abrigo, não saídas com a criança. Este era o documento que Gabriela e Thallys tinham, mas eles acabaram levando Santiago para passar dois finais de semana em casa e depois uma semana inteira. A coordenadora do abrigo, Marília Pinto de Carvalho, disse que não existe liberação de criança sem conhecimento da Justiça. A instituição, que fica em Tianguá, tem um acordo com o MP e com o TJ do Ceará que possibilita esse avanço no processo de acolhimento, sempre acompanhado por profissionais capacitados.
E é aí que entra o milagre de Natal. Todos os 6 casais que estavam na fila da adoção e teriam o direito de passar essa data com o bebê em casa abriram mão em favor de Gabriela e Thallys. O Ministério Público do Ceará, que parecia ter comprado uma briga com o casal, deu parecer favorável à adoção de Santiago pelo casal. O bebê já voltou para casa.
Conceder a guarda ao casal adotante, um passo antes da adoção formal é uma ação do juiz que depende de consulta ao Ministério Público. O juiz pode aceitar ou não o que diz o MP, mas precisa consultar. No caso concreto, a prioridade do MP continuou sendo claramente a fila da adoção, vista como o melhor interesse da criança, acima do vínculo familiar ou do leva-e-traz para um abrigo em tempos de pandemia. O que mudou esse caso foi a atitude absolutamente altruísta dos outros seis casais, todos eles também nas espera por um filho. Como eles concordaram com a cessão do lugar na fila, o MP concordou com a adoção.
Muitas pessoas se mostram com um sentimento terrível de desesperança neste final de 2020. Parece que o Brasil não aprendeu nada durante a experiência mais extrema e desafiadora da nossa geração. Vemos por aí tantas notícias de gente unida, solidariedade, tentativa de preservar vidas e, por aqui, parece que o "farinha pouca, meu pirão primeiro" imperou. Nossas crianças ficaram em segundo plano enquanto marmanjo briga para beber na rua depois das 8 da noite, criamos sommelier de vacina, elevamos o curandeirismo à condição de ciência, tratamos como normal toda e qualquer indignidade no relacionamento entre pessoas, continuamos tratando os omissos diante de injustiças como se não fossem cúmplices. Estamos diante de um milagre?
Juro que meu coração praticamente parou quando eu soube que todos os 6 casais entenderam o drama de Gabriela, Thallys e Santiago. Compreenderam que, da mesma maneira que haverá um encontro de almas na família deles, talvez o destino tenha arrumado esse jeito tortuoso de promover este encontro especificiamente. Na apoteose da imoralidade, a dor que não me dói é apelidada de "mimimi" e muitos perderam a vergonha de revelar publicamente essa podridão da alma. É revigorante saber que ainda há sentimentos humanos onde importa, há quem sofra com os que sofrem e quem abra mão da própria conveniência para evitar o sofrimento alheio. Tomara que seja um milagre de Natal, que vem com a Estrela de Belém esta noite nos céus, o anúncio de uma nova era. Sonhar não custa nada.