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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Urna eletrônica e voto impresso: a prova de que não conseguimos mais debater nada

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Em poucos anos, o brasileiro passou de um povo inerte a um povo que organiza passeata até contra o caixa da padaria que deu o troco em balinhas. São dois comportamentos que levam ao mesmo resultado, que é rigorosamente nenhum. Fazer escândalo por causa de tudo só é mais emocionante, mas é tão ineficiente quanto não fazer nada.

A discussão antiga sobre urna eletrônica e um sistema auditável mais compreensível para o eleitorado foi capturada pela polarização. Agora, danem-se os fatos. Você gosta do Bolsonaro? Então tem de se matar pela impressão do voto. Você é contra Bolsonaro? Tem de dizer que acredita 100% na urna eletrônica e chamar de terraplanista qualquer um que tiver dúvidas. Vai dar super certo isso.

As urnas eletrônicas foram implementadas em 1996 porque ninguém aguentava mais o tanto de fraude que o brasileiro é capaz de fazer com voto de papel. Somos criativos e metidos a malandros, a combinação perfeita para o cultivo do engano. Ocorre que, na época, nossa relação com tecnologia e instituições era outra.

Havia um deslumbramento com as maravilhas da tecnologia aliado a um desconhecimento. Confiávamos na infalibilidade dos computadores, apresentados quase como milagres da evolução humana pelos telejornais da época. Ainda não tínhamos familiaridade suficiente com informática para fazer o que é natural do ser humano, começar a questionar.

Ao mesmo tempo, vivíamos um período de confiança nas instituições. Se você tem idade para isso, deve se lembrar. Falo aqui não só do Brasil. Havia confiança nas instituições da democracia, principalmente após a importante abertura democrática e econômica dos países da ex-União Soviética. Hoje, nós vivemos um cenário completamente diferente.

A questão da urna sempre foi tratada de maneira simplista, como se urna segura garantisse a confiança da população no processo eleitoral. Infelizmente não basta. Além de ser seguro, o sistema de votação tem de conquistar a confiança da população e driblar as tentativas dos políticos de questionar o processo eleitoral. A segurança da urna em si é um passo, o que garante a democracia é a solidez institucional.

O Tribunal Superior Eleitoral historicamente lidou muito mal com os questionamentos à urna eletrônica, tanto os feitos de boa fé quando esses da catimba política populista. A saída sempre foi apelar para os fatos, fazer provas com especialistas, explicar o sistema e descredibilizar qualquer questionamento.

Ocorre que confiança não é racional e não depende só de fatos. Deixar de acolher questionamentos reais e legítimos das pessoas sobre urnas eletrônicas as torna mais vulneráveis às malandragens dos políticos. Não é simples compreender o funcionamento das urnas eletrônicas e o processo se torna ainda mais complexo agora que as comparamos aos nossos computadores e celulares.

"O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento", ensinou Daniel Boorstin, estudioso dos novos fenômenos da comunicação. Quando sabíamos o tamanho da nossa ignorância sobre o funcionamento da urna eletrônica confiávamos nela. Ocorre que, com a evolução tecnológica, temos a ilusão de conhecer, começamos a fazer analogias e surgem dúvidas. Essas dúvidas não são sanadas, o debate é desencorajado por quem poderia esclarecer e inflado por quem quer se aproveitar. Cabe às instituições fechar a equação.

Há duas questões diferentes das quais se encarrega o TSE. A primeira é o correto funcionamento do sistema de votação. A segunda é a confiança da população no processo. Não necessariamente as duas coisas andam juntas. O TSE persiste no seu antigo método de lidar com desconfiança da população. Não funciona mais. Há que se levar em conta a captura do tema pela polarização política.

Questionar resultado de eleição é malandragem política desde sempre até em escolha de síndico de condomínio. Tem quem prefira em papel porque é mais seguro. Temos até um exemplo recente para provar, que é a eleição para a presidência do Senado em 2019. Em frente às câmeras de TV, com apenas 81 votos, conseguiram enfiar um voto falso no meio. Não tem como dar errado.

Por outro lado, o cidadão confiar plenamente e jamais questionar o sistema eleitoral de um país também é a receita mais fácil do autoritarismo desde que o mundo é mundo. Ditaduras notórias fazem eleições altamente questionáveis desde que o mundo é mundo para justificar por que o poder não troca de mãos.

O Brasil não tem longa tradição democrática, é vocacionado para o populismo e vive uma crise de credibilidade das instituições. O presidente insiste que houve fraude eleitoral e o TSE subestimou o poder explosivo da fala, como se fosse "retórica política". Armou-se ali uma bomba. Não basta mais a urna funcionar, é preciso saber como pacificar e ganhar a confiança da população.

Os dois lados da polarização política sobre urna eletrônica estão entrando num jogo perigoso para a democracia e o TSE está dormindo no ponto. Se a credibilidade da votação acabar se tornando um dos temas do cabo de guerra entre grupos radicalizados, teremos um problema gigantesco no Brasil.

Nos Estados Unidos, tivemos aquele horror no capitólio e nem tinha o outro lado dos fanáticos. Havia Donald Trump dando umas incertas de "ah, mas pode ser fraudado" com intenção de se afirmar como anti-establishment e energizar seu grupo. Mas não havia um outro lado fanático defendendo 100% todo e qualquer sistema de votação. Não se saiu xingando de terraplanista quem questionou algum sistema específico de votação. Mesmo assim deu estrago. Pensem no que estamos plantando.

Adoradores e odiadores de Bolsonaro têm passado o dia nessa pauta da urna eletrônica, distribuindo nos grupos mensagens, links e enquetes em que competem contra e a favor. Para eles, já se trata de um jogo. Resta saber se as nossas instituições estão à altura do desafio. Provavelmente teremos as eleições mais polarizadas da história. Nunca a confiança na votação foi tão importante para nós e poucas vezes nossas instituições tiveram tanta dificuldade para decifrar a confiança do povo.

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