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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Vale a pena enfrentar milícias digitais anônimas e a Justiça concorda

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Nas últimas semanas, muitas pessoas ficaram surpresas com o meu posicionamento pessoal de desmascarar a milícia virtual anônima Sleeping Giants em sua prática do ódio do bem. Obviamente a posição firme da Gazeta do Povo contra a prática da chantagem, algo difícil de assumir na era da hiperinformação, trouxe para mim a oportunidade única de travar publicamente uma luta que há 5 anos travo de maneira silenciosa. Os primeiros frutos, coincidentemente, foram colhidos esta semana, três vitórias judiciais contra integrantes desses grupos de ódio.

Pessoas não são o que pregam, são o que toleram. Guarde essa frase. Ela foi o meu guia para compreender como grupos formados em torno de motivos nobres se degradam até o nível do chiqueiro moral. Esqueça cores ideológicas, esquerda e direita, progressistas e conservadores, foque nos valores. A dignidade é inerente à condição humana e inegociável. Guarde essa outra frase. Esses dois princípios me guiaram nessa luta.

Sempre houve perseguição contra jornalistas, em todos os governos, cada um à sua maneira. Algumas práticas das milícias virtuais lideradas ou turbinadas por anônimos reproduzem as dos políticos. Um exemplo é o "bingo dos jornalistas", uma cartela utilizada para pedir a demissão de 20 de nós há uns 2 anos. Houve sucesso em alguns casos, felizmente no meu não. A inovação está em outro método, o de "desgarrar a ovelha do rebanho", mirar em uma única pessoa. Quando o alvo é coletivo, há união em torno da causa. Quando o alvo é um único indivíduo, ele passa a ser tratado como leproso pelos demais, temerosos da contaminação pela energia ruim.

Todos os que me seguem sabem o quanto eu repito a frase "brasileiro é ótimo de iniciativa e patético de terminativa". Minha saga começa aí, em 2015, quando fiz uma entrevista ao vivo com a professora da rede pública Paula Rosiska explicando como o projeto do Escola sem Partido, criado naquele ano, funcionaria na prática. Ele não funcionaria. Seja você contra ou a favor do projeto, era uma técnica legislativa pobre, o que disse diretamente ao seu autor. Jamais o projeto foi trabalhado para que tivesse consequência no mundo real, a opção foi manter a militância de universo simbólico até que o STF apontasse a discrepância entre o que estava no papel e o ordenamento jurídico brasileiro.

Tenho 24 anos de profissão, comecei como repórter policial, fui repórter investigativa e estou muito acostumada a lidar com descontentes e represálias. Ali, no entanto, vi algo muito diferente, uma orquestração difamatória que só se tornou possível com o advento e a conivência das redes sociais. Eu ainda não entendia como isso funcionava, mas hoje vejo nitidamente as fases de degradação moral dos grupos unidos para linchamentos de indivíduos. O Sleeping Giants está na fase inicial, aquela em que se dá ao anônimo o poder de triturar pessoas porque já fez coisas boas.

A primeira vez em que isso aconteceu foi quando eu trabalhava no site O Antagonista e houve, mais uma vez, uma ampla pressão pelas redes para que eu entrevistasse uma pessoa como especialista em um tema do qual é um estudioso apenas, sem experiência nenhuma. Não é minha prática. Este senhor postou uma foto minha fazendo reportagem de rua em uma passeata na avenida Paulista, e legendou dizendo que eu era hipócrita porque estava no caminhão da causa deles mas era contra a causa deles. Confesso que não dei importância.

Horas depois, havia milhares de postagens que, além de me xingar, me ameaçavam de morte, pediam que eu fosse estuprada coletivamente e colocavam dados e endereços de toda a minha família. Facebook e Twitter nada fizeram, pediam que eu reportasse uma uma cada postagem, num formulário detalhado, para que analisassem. O autor do post inicial dizia não ter responsabilidade sobre as agressões e os partidários das ideias deles concordavam que era inocente. O circo acabou quando a agora deputada Carla Zambelli ligou para o autor e o trouxe à responsabilidade. Mal sabia eu que viveria experiências semelhantes semanalmente.

Em setembro de 2017, no meio de uma das inúmeras reportagens que fiz mostrando como a patrulha linguística impacta negativamente no meio jurídico, o mesmo grupo achou uma nova oportunidade de me fazer alvo. Fora do meio jurídico muita gente chama de pedófilos os estupradores de criança. Devido ao ativismo, isso começa a ter impacto no meio jurídico, como sempre, favorecendo os criminosos. Ao mesmo tempo, diversos perfis começaram a reproduzir o meu tweet dizendo que significava o contrário, que eu sou defensora do abuso sexual de crianças.

Curiosamente, diversos influencers ligados ao mesmo grupo replicavam nas redes e em grupos, ao mesmo tempo a difamação. A única pessoa ligada a esse grupo que se manifestou contra a infâmia foi o humorista Joselito Müller. Eu decidi ir à polícia, mas meus colegas jornalistas foram terminantemente contra. Na época, diziam que denunciar seria um ataque à liberdade de expressão. "A liberdade de expressão, a oposição política ou qualquer manifestação de indignação, não é sinônimo de permissão para a violação de direitos alheios, ainda mais quando falsa, portanto injusta. Não é uma autorização para se inventar e dizer o que bem entende sem qualquer consequência", disse esta semana a Justiça Paulista em um dos processos em que tive vitória.

O anonimato protegido pelas redes faz com que indivíduos adultos não tenham de arcar com as consequências de suas ações. Neste caso é vilipendiar minha honra, no do Sleeping Giants é prejudicar financeiramente uma empresa por capricho, mas há casos de todo tipo, como lavagem de dinheiro, corrupção e tráfico de drogas. As redes sociais protegem sistematicamente os anônimos que conseguem engajamento, inclusive contratando alguns dos escritórios de advogados mais caros do Brasil para proteger o anonimato deles. Isso vai contra a Constituição Brasileira e contra o tratado entre Brasil e Estados Unidos sobre uso de dados dos cidadãos.

Nem todos os que participam de processos difamatórios são anônimos, robôs ou mandados por alguém. A maioria é espontânea. Há os que realmente acreditam nas acusações mentirosas e se unem ao grupo para lutar contra o mal. A chave está em ver quantos de seus próprios princípios essas pessoas atropelarão em nome dessa luta, que só chegará ao fim aniquilando completamente um ser humano. Pessoas boas e honestas terão coragem de dizer publicamente que admitem o linchamento de um indivíduo por um grupo que não mostra a cara porque esse grupo anônimo é nobre. A única nobreza, no entanto, é propiciar um tantinho de vingança aos membros do grupo nos ataques virtuais conjuntos contra algum inimigo.

Eu não fui à polícia na época porque não queria perder o emprego. Foi um erro gigantesco. A história evoluiu na mesma linha das teorias conspiratórias do QAnon, consideradas terrorismo doméstico nos Estados Unidos. Esses grupos utilizaram uma foto minha na Exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia, para sedimentar como se verdade fosse que eu faria parte de um círculo internacional de estupro de crianças. Parece absurdo que alguém acredite, por isso muitos subestimam. O FBI declarou que esses movimentos são terroristas devido aos efeitos, que conheci bem.

A partir do momento em que a imagem de uma pessoa é colada à origem do mal na humanidade, despida de dignidade, do direito de ser ouvida ou até de redenção, toda e qualquer ação contra ela passa a ser justificável. E sempre seguirá o mesmo enredo em que a liderança anônima jamais diz diretamente para fazer o ataque, ele parte de seguidores, a pessoa atacada reclama, os seguidores dizem que a liderança não é responsável. Ainda cola com muitas pessoas que desconhecem o funcionamento das redes, felizmente não no Poder Judiciário, que recebe toneladas de processos semelhantes de gente que não é publicamente defendida no ninguém solta a mão de ninguém.

Não fiquei sozinha, no entanto, não se enganem. Tive a valiosíssima ajuda de pessoas que, como eu, querem impedir que esse mecanismo perverso de moer gente em nome do circo prospere. Em poucas semanas, a simples menção ao meu nome passou a atrair um número gigantesco de postagens do mais baixo calão, o que é mortal para quem trabalha com comunicação na era das redes. Não importa se eu sou algoz ou vítima, se tenho razão ou não. Ninguém quer que seu evento ou sua ação sejam invadidos pelo lodaçal a violência sexual. Isso passou a acontecer a cada postagem das minhas fotos ou do meu nome, o que teve impacto gigantesco no mundo real, o dos boletos.

Meus apoiadores estiveram sempre presentes. A Gazeta do Povo aguentou os solavancos mesmo nas campanhas para que se cancelassem assinaturas até que eu fosse demitida, feita no ano passado. André Fróes, meu advogado, me ajuda até hoje a botar a vida em dia. Claudio Castello de Campos me ajudou com ações a descobrir as entranhas do relacionamento promíscuo entre redes sociais e anônimos. A deputada Janaína Paschoal me ouviu, aconselhou e sempre interveio em minha defesa. Diversos parlamentares me ouviram, ajudaram e instruíram. Resolvi me aproximar de todos os que já haviam me atacado, entender como agiam. Fui à Polícia Militar, Polícia Civil e Ministério Público. Escrevi dois e-books e uma tonelada de artigos sobre o tema. Inaugurei um projeto sobre Vida Digital Consciente no meu canal de YouTube. É esse percurso que me levou às vitórias na Justiça e ao enfrentamento do esquema maligno do Sleeping Giants.

Só se combate o mal com o bem

Errei muito pensando que argumentar, responder ou até mesmo atacar esses grupos seria solução. Na verdade, a emenda sempre saiu pior que o soneto. Não há capacidade de diálogo com quem considera que a dignidade humana é condicionada à aderência a um grupo específico. É preciso uma força maior para lembrá-los que há leis e adultos devem obedecê-las mesmo que não gostem. Infelizmente, os crimes contra a honra no Brasil são pensados para um mundo sem internet, a pena é muito pequena. Parti para a reparação, a área cível.

"A requerida utilizou-se das redes sociais para difamar a autora, associando a imagem dessa a uma "conspiração global satanista envolvendo o STF, a artista Marina Abramovic e a suposta condescendência de tais pessoas com o abuso sexual infantil". Os prints acostado à inicial, notadamente às fls. 16/29, mostram uma sequência de ofensas sofridas pela autora, por diversas pessoas, seguindo a toada da narrativa fantasiosa contra ela criada que, em síntese, a associa como "defensora da pedofilia" – o que evidentemente causa prejuízos à sua honra e imagem, inclusive, na esfera laboral, dado que atua no mercado digital. Ora, a divulgação sem prévia apuração de veracidade configura negligência, senão dolo eventual, na ofensa a honra da vítima.", diz a sentença da juíza Renata Meirelles Pedreno.

Ontem, coincidentemente, quando o Porta dos Fundos e o Sleeping Giants encerraram de forma vergonhosa o episódio machista contra a vereadora curitibana Indiara Barbosa, eu recebia uma vitória em caso com a mesma acusação. Inventar que uma mulher ascendeu profissionalmente usando sexo é um vício que se repete em todos esses grupos movidos a ataques. E, infelizmente, as reações são as mesmas, na mesma sequência, uma cadeia de perversidade.

Grupos unidos contra algo são legítimos, mas não democráticos. Nenhum democrata se define pela oposição a um grupo, mas pela própria essência. Dessa forma, manter a união depende de explorar frustrações e ressentimentos. Por isso, sempre haverá o episódio do linchamento coletivo contra mulher, justificado pelo grupo e até por outras mulheres. Qual a origem dos mais profundos e paralisantes ressentimentos e rancores da vida humana? A relação amorosa. Os ataques que sofri não são por nada que sou, fiz ou disse, são de pessoas que desconsideram a possibilidade de reconhecer minha dignidade. Eu sou apenas o objeto que representa a tela em branco onde cada indivíduo do grupo projeta suas frustrações. Expliquei em detalhes esses mecanismos no meu livro Tratamento de Choque.

Cartela para identificar os termos mais comuns de ataques a mulheres disfarçados de debate político.

Passo a passo começa a se repetir entre os seguidores do Sleeping Giants o mesmo processo ocorrido nesses grupos que levei ao Judiciário. Inicialmente, diziam-se conservadores e pareciam me atacar por acreditar numa mentira que me colocaria contra tudo o que julgam ser sagrado no mundo. Logo em seguida, começam os xingamentos. O líder não os contém nem condena, o grupo diz que o líder não tem responsabilidade por aquilo, é só um zé ninguém fazendo loucuras na internet. Os ponderados até condenam publicamente a postura do grupo, mas não retiram o apoio nem cobram mudança. É a senha para pisar no acelerador.

O grupo parte para acusações, preferencialmente de cunho sexual, questionando a competência de uma mulher. Subiu na vida usando sexo, ponto de partida do quadro do Porta dos Fundos, é a mais comum. Também é comum a pseudodesculpa que reforça não reconhecer a dignidade da pessoa atacada e as pseudocondenações, como a do Sleeping Giants, que não cobram reparação nem mudança. O foco é o grupo, o agressor, a vítima não é digna de atenção. Felizmente, a Justiça considera diferente.

"No caso dos autos, a requerida utilizou-se das redes sociais para difamar a autora, postando, expressamente, às fls. 04, "Aprendam com Madeleine, para ter emprego bom, não basta ter competência, tem que fazer caridade com o fiofó". Isso porque a própria autora teria postado em sua rede social já ter tido que pedir demissão porque não - parte suprimida mas possivelmente de cunho sexual - para um diretor. Evidente que a autora, em sua própria página, fez uma crítica a tal postura misógina, infelizmente presente na nossa sociedade, da qual ela própria disse já ter sido vítima. Todavia, a requerida, desvirtuou por completo a colocação feita pela autora e escreveu que a frase acima já reproduzida, desmerecendo a qualificação profissional dessa ao afirmar que ela apenas teve um bom emprego porque cedeu às investidas sexuais de superiores." diz a sentença Judicial.

Sei que os monopolistas da virtude vão pensar que isso é coisa de bolsominion. Não estamos falando de política, mas de psicologia social. Esses dias me enviaram um vídeo de 4 minutos, postado no Instagram, em que uma seguidora fanática do Sleeping Giants repete as mesmas ilações contra mim. Fez exatamente o que diz a juíza, desvirtuou por completo minha declaração sobre um drama que vivi e milhões de mulheres vivem, para insinuar que eu realmente uso sexo para ascender profissionalmente e depois me arrependo. Mostrei a amigos que apóiam o Sleeping Giants. A reação não falhou em nenhum caso: "mas essa mulher não é ninguém". Pessoas são o que toleram.

"Os prints acostado à inicial mostram uma sequência de ofensas sofridas pela autora por parte da requerida, o que evidentemente causa prejuízos à sua honra e imagem, inclusive, na esfera laboral, dado que atua no mercado digital", diz a juíza Renata Meirelles Pedreno. É o entendimento mais avançado do contexto, existe um mercado digital, pessoas dependem desse mercado e ele tem de estar dentro da lei, não pode deixar que direitos dos cidadãos sejam sistematicamente violados.

Nos idos de 1940, o Código Penal não previu a revolução que a internet seria, mas já tem uma linha traçada neste sentido na área de crimes contra a honra. "A ampla divulgação de "fake news", posteriormente replicada sem qualquer conferência da informação por tantas outras pessoas que atacaram a autora em suas redes sociais, bem evidencia a dimensão obtida pela divulgação da noticia inverídica acerca da autora e, evidentemente, seus efeitos nefastos pelo grande número de pessoas atingidas por tal desinformação. Ora, se no âmbito criminal, o art. 141 do Código Penal prevê aumento de pena para crimes contra honra praticados na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria, por óbvio, também na esfera cível a reparação moral merece ser majorada", diz a sentença. Que abram os olhos os legisladores.

Alguns dos processos judiciais que abri por ataques virtuais difamatórios são contra alvos de desmonetização por "discurso de ódio" pelo Sleeping Giants. Entre os alvos deles também há gente que se engajou de forma bastante animada, nos bastidores e até abertamente, na campanha do Escola sem Partido pela minha demissão da Gazeta do Povo. Tive várias oportunidades de pagar na mesma moeda, o que me tornaria um deles, como se tornaram o Sleeping Giants e seus apoiadores. Ainda sou uma otimista, não pretendo me render. Comemoro as três vitórias ansiosa pelo dia em que essa luta se torne desnecessária.

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