Ouça este conteúdo
Se eu tiver de escolher uma coisa para banir do Brasil imediatamente será o jornalismo declaratório. Passa na frente até de alguns dos meus ex (que Deus os tenha). Jornalismo declaratório é quando ouve os dois lados, um diz que está chovendo e o outro diz que não está chovendo. E você que se vire. Ninguém foi lá para ver se está chovendo ou não nem filmou para você ver. É assim que se está debatendo o passaporte da vacina.
Vi colegas jornalistas, políticos e pessoas bem informadas rebatendo nos últimos dois dias as afirmações do ministro Queiroga e do presidento Bolsonaro. Um longo debate sobre priorizar vida ou saúde é travado de forma incendiária por gente que se leva a sério demais. Enquanto isso, o governo já implantou o passaporte da vacina para os estrangeiros e parece que ninguém percebeu. A medida é acertada e diferente de um passaporte nacional, interno, que até a OMS condena.
São duas discussões diferentes e começo pela que mais me divertiu, a do passaporte para estrangeiros. É impressionante como Jair Bolsonaro consegue manipular com maestria a ânsia da imprensa de fazer julgamentos morais sobre ele. Primeiro veio com a história de mais vale a liberdade do que a vida. Frase boa, forte, importante e descontextualizada de propósito. Toda tweet, textão, editorial e briga em torno disso. Vai lá o ministro, repete e começa todo o circo de novo.
Então, o presidento dobra a meta. Chamou o passaporte da vacina de coleira e disse que jamais exigiria isso. Como a notícia quase sempre é dada junto com uma avaliação moral da frase, muita gente confunde as coisas. No whatsapp sobra gente achando que o tal passaporte seria para a gente se movimentar pela rua. Nas redes sociais, repúdio geral por não adotar o passaporte, qualquer um deles. Ninguém nem sabe o que é, mas se Bolsonaro falou está errado.
A galera está até agora repetindo a ladainha "genocida, negacionista, etc" condenando o presidento por não adotar o passaporte da vacina. Só que, no Diário Oficial, que é o que vale, ele já adotou! Importante deixar claro aqui: o que vale como documento não é live nem grito no chiqueirinho do planalto, é o Diário Oficial. Quem lê a Gazeta do Povo já sabe todas as novas regras para quem vem do exterior.
E agora que Bolsonaro adotou o passaporte da vacina (ou, como ele mesmo apelidou, coleira) vai passar a ser errado então? Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos. O fato é que a gritaria passa a ser uma festa e uma reação tão automática que ninguém nem questiona direito. A onda é usar as frases ditas por qualquer integrante do governo para sinalizar virtude. O ministro da Saúde diz que a liberdade está acima da vida. Ninguém perguntou a liberdade de quem.
Sinceramente, nem para oposição a galera serve mais, só para massa de manobra. Ao não exigir passaporte de vacina internacional, a liberdade de quem seria protegida? Não é a nossa, é a dos estrangeiros. Se o governo realmente desse tanta importância assim à questão, estaria negociando para brasileiro não precisar apresentar atestado de vacina quando viaja. O oposto interessa em quê para a liberdade do povo brasileiro? Até agora eu não entendi essa história, mas o importante é que fizeram o tal passaporte dos estrangeiros.
Tem 3 coisas que o brasileiro faz certo sem ninguém pedir: tomar banho direito, limpar a mão antes de pegar em comida e tomar vacina. Não teve nem campanha, os políticos se digladiando em vez de orientar a população, a imprensa perdida em jornalismo declaratório, pandemia matando, não importa: o brasileiro tomou vacina. País mais chique que a gente e com menos percentual de vacinados exige nossos comprovantes. A gente não vai exigir deles? Agora vai, a Anvisa decidiu, o governo publicou no Diário Oficial e pronto.
Outra coisa é o passaporte de vacina local, do qual muitas cidades falam, principalmente aquelas que estão de olho em tentar viabilizar uma festa de carnaval, como o Rio de Janeiro. A ideia é que cidadãos brasileiros tenham de apresentar a comprovação da vacina para atividades corriqueiras, como entrar num shopping ou repartição pública. No começo, o pessoal queria até para tomar táxi, mas daí resolveram não esticar tanto a corda.
A Organização Mundial de Saúde é contra o estabelecimento de passaportes de vacina a não ser em situações de necessidade absoluta, o que não é o caso brasileiro, com a maioria de adultos vacinados. Por quê? Nada a ver com liberdade nem debate filosófico. É porque não funciona mesmo. Se coloca obrigatoriedade, quem está reticente mas não é negacionista desiste na hora de tomar vacina porque desconfia. Você aumenta o problema da desconfiança e não aumenta a confiança, simples assim.
Eu sinceramente custo a entender quais os motivos de implementar algo que comprovadamente não funciona para aumentar a cobertura vacinal. Parece lógico para alguns que, se exigirmos a comprovação de que só entram em determinado lugar pessoas vacinadas, ali não há infecções. Além disso, aumentaria o incentivo para que todos completassem o esquema vacinal contra a COVID. Se fôssemos tamagotchis, o raciocínio seria perfeito. Ocorre que lidamos com seres humanos.
Há muita reticência e dúvida sobre as vacinas pela velocidade do desenvolvimento e toda a situação de incerteza da pandemia. Isso é confundido com negacionismo e respondido com deboche de forma corriqueira. Pessoas que querem informação e têm dúvidas legítimas são tratadas como lixo, apontadas como símbolo do atraso. Se a desconfiança aumenta, é mais difícil que tomem vacina. Só vão tomar quando confiarem e é aí o ponto: ganhar confiança.
Transbordam pela internet relatos de médicos implorando para as pessoas não ficarem tirando sarro e xingando de negacionista quem tem dúvidas sobre vacina. Vários deles relatam que, no consultório, recebem gente que demorou meses para decidir pela vacinação porque tinha dúvidas práticas. Gente que teve alergia com outras vacinas, tem imunidade baixa, toma determinados medicamentos, teve outros históricos médicos, enfim. Era só resolver a dúvida.
Efetivamente, o passaporte da vacina dentro de uma cidade serviria para quê? A pessoa pode estar vacinada mas ter se contaminado e não saber. Exigiríamos então testes de cada um? Seria o mundo ideal, garantia de 100%, só que não é viável. O passaporte da vacina que temos funciona? Vamos confiar nossos destinos ao Conect SUS? Eu já vi gente aceitar foto de vacinação do Instagram porque o app funciona só quando está com vontade. Na prática mesmo, qual o propósito disso? Psicológico?
Cá para nós, levando em conta os talentos nacionais, é muito mais fácil falsificar atestado de vacina do que conseguir que o Conect SUS funcione direito para todo mundo o tempo todo. Fora que as informações são inseridas nele manualmente. Tem gente que entra informação errada, precisa ir com papel no posto corrigir. Tem gente que a vacina não aparece no app. São casos isolados? Não, é tudo gente mesmo, vida real travada por burocracia que não funciona.
Uma coisa é você exigir teste para eventos recreacionais e privados de livre adesão. Vai fazer um aniversário em casa mas só quer que entre gente testada. Os eventos presenciais que fizemos recentemente na Go New eram com testagem prévia de todos nós. E nos encontros privados a preferência é por gastar com teste a olhar certificado de vacina por quê? Privacidade? Não, certeza mesmo. Já que é para ter controle, vamos controlar o que funciona.
Estamos lidando com seres humanos. Pegue a coisa de que uma pessoa mais gosta e torne obrigatória. Esculhambou tudo. A pessoa vai desconfiar, pegar birra, nojo até. É por isso que a OMS não recomenda nem vacina obrigatória nem esse passaporte vacinal para usar no próprio país. Exigir vacina para entrada no país é algo corriqueiro e, como não é uma mudança na sua rotina, é algo de um governo estrangeiro, não causa tensão interna nos países.
Infelizmente o debate político e boa parte do noticiário não são sobre isso, são sobre narrativas morais correlatas. Eu iria até botar um salto alto e dizer que não me interessam, mas é mentira. Confesso que dou muita risada com as performances dignas de Oscar dos nossos políticos para garfar manchete de primeira página. Pior que funciona.
O grande problema de debater apenas por meio do jornalismo declaratório e sem fazer conexão com a realidade é igualar ideias boas a bravatas morais. Enquanto discutimos se vacinar é proteger a comunidade ou uma escolha individual, perdemos de vista o que interessa ao Poder Público que é conter o vírus. O grande debate sobre passaporte da vacina tem sido sobre liberdades individuais. Não precisava ir tão longe, era só perguntar como essa ideia funcionaria na prática e se a autoridade garante que não haverá contágio onde houver o tal passaporte.