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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Vídeo do Porta dos Fundos não é machista porque não existe machismo na esquerda

No vídeo, a vereadora mais votada de Curitiba é garota de programa e vazou nudes para se eleger. (Foto: Reprodução / Vídeo)

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Imagine que Danilo Gentilli fizesse um vídeo insinuando que Samia Bonfim conseguiu ampla votação devido a favores sexuais para Marcelo Freixo. Isso seria muito mais do que machismo, seria misoginia estrutural, a aversão a mulheres existente apenas entre os que não se declaram de esquerda. No entanto, não há machismo quando o Porta dos Fundos divulga um vídeo insinuando que a vereadora eleita Indiara Barbosa é uma encostada promíscua que fez favores sexuais para João Amoêdo para ser eleita. Por que não? Porque não existe machismo nem na esquerda nem entre os progressistas brasileiros.

Há algo que mulheres, negros e LGBTs ainda não compreenderam direito sobre preconceito e igualdade. Para que sejam considerados quase tão seres humanos quanto os homens brancos-cis progressistos, feministos e antirracistos, precisam obedecer os monopolistas da virtude. Caso contrário, estão aí para tomar esculacho mesmo, não tem como concluir diferente.

Indiara Barbosa é a vereadora mais votada de Curitiba. Auditora contábil, gerente sênior de uma multinacional, tem MBA em finanças pela FGV. Faz parte dos grupos empresariais Mulheres do Brasil e Mulheres Executivas. É mãe de um menino de 7 anos. Entrou na política há alguns anos, fez o curso do Renova BR, foi indicada representante RAPS e, em 2018, foi a deputada federal mais votada pelo NOVO do Paraná, 31 mil votos. Mas nada disso importa. O valor e a dignidade de uma mulher são medidos pela sua sujeição às pautas de esquerda e se utiliza ou não vocábulos como "mana" e "sororidade". Que pena, Indiara, não é o seu caso.

O Porta dos Fundos indicou um vídeo que, cá para nós, nem é tão engraçado, em que uma filha curitibana filma a mãe que acaba de se eleger a vereadora mais votada. Ela conta que conseguiu chegar lá usando sexo, como se espera de toda mãe de família que chegue a um posto profissional de destaque. A personagem, caricata, diz nem ter sido avisada de que era candidata. Anos antes, estava muito louca de absinto numa festa em que teve relações sexuais com vários homens e um deles era um chefão do NOVO. Daí, ele resolveu fazer campanha para ela e o resultado está aí: a mais votada da cidade.

Foi machismo do Porta dos Fundos insinuar que a vereadora eleita Indiara Barbosa usa sexo para atingir objetivos políticos? Claro que não, já que não existe machismo no Porta dos Fundos, na esquerda nem no progressismo do Brasil. E se o Danilo Gentilli tivesse feito o mesmo vídeo sobre a vereadora? Também não seria machismo porque ela está aí é no mundo para ser esculachada mesmo, já que não se filiou a um partido de esquerda.

Há progressistas que vão ver o tamanho do esculacho e decidirão se posicionar. Como fazer isso sem desrespeitar os monopolistas da virtude que jamais erram? Chama-se pseudocrítica. O posicionamento consiste em criticar o que é o partido NOVO, o que é o liberalismo e, talvez, até a pessoa da própria vereadora eleita. Quando ao Porta dos Fundos, deixa-se de lado e foca-se no vídeo. Exemplo: "O Partido NOVO é a coisa mais horrorosa que já surgiu no Brasil porque quer matar todos os pobres de fome e institucionalizar o uso do sapatênis. Mas é um desserviço o vídeo do Porta dos Fundos". Questiona-se a essência de um lado e algo pontual do outro.

A outra ferramenta de argumentação é chamada de gaslighting, um tipo de manipulação sutil que põe em dúvida o senso de realidade da pessoa atacada. O termo vem do filme Gaslight, de 1944, com Ingrid Bergman. Na tentativa de enlouquecer a mulher, o marido apaga as luzes a gás da casa e depois, quando ela reclama que está escuro, ele jura que está claro. No caso específico funciona dizendo que a vítima não foi tão ofendida, que está exagerando na reclamação, que a pauta é ridícula, que ela sempre reclama disso, que é louca, que é chata ou enxergando interesses ocultos na reação contra o agressor.

Quando Indiara Barbosa é atacada por alguém que faz parte da patrulha progressista, o mais comum é que seja esculachada por uma enxurrada de robôs, receba gaslighting dos seguidores medianos e a pseudocrítica de personalidades progressistas. Jamais vão acusar o Porta dos Fundos de ser machista, combater o grupo, exigir retratação. Também jamais dirão que ela tem de ser respeitada ou encontrarão qualquer qualidade humana. Será algo como: "ela é de um partido horrível e merece ataque mas o vídeo foi ruim".

Caso Indiara Barbosa tivesse sido atacada por alguém da direita, a patrulha progressista se dividiria entre os que "não viram e não souberam" e entre os monopolistas da virtude das categorias "ela que lute" ou "está colhendo o que plantou". Entre as personalidades da direita que agora percebem a existência do machismo no Brasil, a reação mais comum seria outro tipo de gaslighting: "a briga é inútil porque vocês estão do mesmo lado", como se quem ataca não tivesse culpa e ela devesse aceitar humilhação pública. Ela seria aconselhada a "não reagir" ou "fazer as pazes" com quem a atacou. A situação seria exatamente a mesma caso uma mulher de esquerda seja atacada por um homem de esquerda, o que jamais seria machismo porque na esquerda não há machismo.

Nos últimos tempos, os devotos de são anônimo Sleeping Giants e agora, quem diria, os apoiadores do candidato Guilherme Boulos, têm me oferecido diariamente afagos. São muito semelhantes aos oferecidos pelos seguidores de radicais políticos eleitos na onda do bolsonarismo. Os primeiros jamais incomodaram a intelectualidade porque, afinal, eu devo merecer. Os novos não incomodam porque eu deveria aceitar como elogio tudo o que vem desses monopolistas da virtude.

Este final de semana, cheguei a fazer um dicionário das palavras que se repetem em ataques do esgoto da internet - alguns dos quais tive de levar ao Judiciário - e os ataques dos seguidores dos Sleeping Giants e de Guilherme Boulos. Obviamente esses são só para o meu bem. Meu seguidor Cleverson Gonçalves fez a gentileza de elaborar essa belíssima cartela de bingo com as palavras mais usadas para se referir à minha pessoa:

É óbvio que a argumentação dos seguidores agora, convenientemente calados diante desse carinho todo, é a de que nem Sleeping Giants nem Guilherme Boulos têm culpa pelo tanto de misóginos que os seguem. Eu também tenho misóginos que me seguem, seria impossível não ter, exatamente por isso não aponto mulheres como alvos e depois fico quieta diante de ataques, como fez o Sleeping Giants comigo. É técnica antiga, que aprendi depois dos primeiros afagos de torcedores apaixonados do Terça Livre e de Benê Barbosa. Aliás, cadê o Sleeping Giants agora para desmonetizar essa misoginia do Porta dos Fundos? Não devem ter acordado ainda.

O que é violência doméstica? Depende de quem é o agressor

Nas democracias, dignidade é inerente à condição humana e inegociável. Em grupos políticos que amam eleições e desprezam democracia, dignidade depende da adesão ao grupo. Dessa forma, mulheres que não se declaram de esquerda podem ser esculachadas livremente. Mulheres de esquerda podem ser esculachadas livremente por homens de esquerda. E, claro, há sempre o agressor de estimação.

Violência doméstica é um problema muito complexo de resolver porque envolve toda a estrutura emocional e familiar das pessoas. Fora o fato de que há pouquíssimo tempo se "mete a colher" em briga de marido e mulher, a intimidade do vínculo torna todos os casos intrincados e dolorosos. É possível esconder bem essa chaga. No segundo mandato de Dilma Rousseff, o Brasil chegou a indicar para a presidência da corte Interamericana de Direitos Humanos o juiz que protagonizou um dos casos mais ruidosos de abuso doméstico em Brasília. À época não se imaginava, depois a questão veio à tona.

Não é caso isolado nem de um grupo social ou grupo político. Diversos setores da sociedade civil e das instituições de governo tentam atacar esse problema de formas múltiplas, já que ele esgarça o tecido social e pesa também sobre as futuras gerações. A era da internet traz um desafio extra com a normalização dos ataques a mulheres e os grupos dos chamados "incels", cada vez mais apaixonados por política.

"Incels" são "celibatários involuntários", algo que sempre foi uma fase na vida de muitos meninos, a de não fazer sucesso com as meninas. Ocorre que, na internet, eles se organizam no que poderiam ser grupos de apoio mas acabam unidos pelos ressentimentos contra mulheres específicas. Cada vez mais envolvidos na política, utilizam o discurso político como fachada para o que realmente querem: atacar e ridicularizar mulheres. Sem controle ou apoio psicológico, os grupos escalam e já terminaram em diversos atentados nos Estados Unidos e Canadá.

Ressentimento é poderoso e paralisante. Ao mesmo tempo em que grupos unidos pelo ressentimento contra mulheres buscam o discurso político, os políticos também buscam o apoio desses grupos, sempre muito ativos na internet. A aproximação da política com a comunidade gamer passa por este caminho. Os gamers são tão diversos quanto a sociedade, mas as empresas cedem aos reclamos dos grupos que odeiam mulheres e os demais, que não atacam mulheres, em sua maioria toleram os ataques.

Recentemente, a Microsoft havia contratado Isadora Basile como apresentadora do YouTube da Xbox Brasil. Ela começou a ser atacada pelos grupos de gamers que não aceitam mulheres fora de casa ou não submissas. Os mesmos grupos, nos últimos anos, atacam também atrizes e comunicadoras. Dias depois, a Microsoft decidiu demitir a apresentadora para garantir a segurança dela. O falecido canal XBoxMilGrau, dedicado especificamente à fatia dos gamers que ataca mulheres, recebeu dias depois uma amostra do videogame. Não teve Sleeping Giants atrás de ninguém, afinal esse público é democrático e passa o dia na internet.

Você verá cada vez mais políticos entrando no mundo dos games, o que seria natural, dado que é um mercado gigantesco e diverso. No entanto, nenhum deles ainda conseguiu inverter a lógica de submissão aos grupos que atacam mulheres sistematicamente. Os primeiros a entrar na onda foram os de direita e agora a esquerda também segue os mesmos passos. O maior desafio dos grupos políticos é não se agachar diante de radicais.

Até aqui, infelizmente estou falando de realidade, uma coisa que atrapalha demais a lacração nas redes sociais. Saber que todos temos defeitos e erramos torna esse trabalho de lacração praticamente impossível, então a questão é fingir que todo mundo à nossa volta é perfeito. Resolveram fazer, na Folha de São Paulo, um obituário de João Alberto Silveira Freitas, homem negro assassinado a socos pelos seguranças do Carrefour na véspera do feriado da Consciência Negra. Título: "Beto Freitas foi pai precoce, filho presente e marido errático". Errático, no caso, é condenado por violência doméstica.

Eu não sei por onde começar a dissecar o sarapatel de coruja que este caso virou. Começa com o fato em si, distópico. Um cliente assassinado no mercado, apanhando durante 4 minutos diante de 15 testemunhas. O pessoal esquece o morto, a família, o enterro e passa dois dias debatendo se existe racismo no Brasil. Daí, alguém resolve fazer uma "homenagem" ao morto, um obituário numa sessão especial, com texto quase literário do jornal paulista. No meio dessa história surge o caso de violência doméstica e, cereja do bolo, o comportamento é definido como "errático".

Não há em outros obituários informações semelhantes a essa, o relato da prisão e da agressão à esposa. O processo, em segredo de Justiça, rodou por grupos de whatsapp desde sexta-feira como argumento para o debate sobre racismo e para estabelecer culpas sobre o assassinato. Havia três escolhas: usar a informação no obituário, citar no título e como citar. Foi feita a mais machista, chamar de "marido errático" um agressor de mulher.

A patrulha de universo simbólico precisa de conexão com a realidade. De um lado, há quem queira justificar o cruel abate a socos usando a vida pregressa do morto. O outro reage sempre em oposição, precisa dizer que o morto era bom. Diante da informação de que ele agrediu a esposa, o que nada tem a ver com o assassinato, resolve suavizar no título. Como sempre, quem sai perdendo é a mulher, que foi feita para isso mesmo, ser pisoteada de acordo com os interesses do momento.

Há muitos homens que se sentem injustiçados com textos como este, já que nunca se posicionaram dessa maneira na vida, sempre respeitaram as mulheres. A maioria dos homens é assim, mas precisam se posicionar diante da minoria que não é e faz estragos mesmo sem intenção deliberada. Se extremistas da política e dos games sentem-se à vontade para atacar mulheres é porque não encontram oposição suficiente na sociedade. A quem não tem limites é preciso dar.

Reconhecer o machismo de homens do mesmo espectro político, grupo social ou família é incômodo porque parece confissão de culpa. Para os homens, é como se fosse igual. Para as mulheres, é como se não lutassem o suficiente. Casar com o erro pode confortar a alma momentaneamente. Só que assim o mundo regride. Na lógica da lacração, há um grupo que detém o monopólio da virtude. Na vida real, não há ser humano perfeito, todos erram e todos podem se corrigir. Aceitar os próprios erros e as virtudes dos adversários não é fraqueza, é sabedoria.

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