- Presidente Bolsonaro, por que a primeira-dama Michele Bolsonaro recebeu R$ 89 mil do Fabricio Queiroz? - pergunta o repórter.
- Minha vontade é encher tua boca na porrada. - responde o senhor Presidente da República.
No meu primeiro emprego como jornalista, aos 17 anos, o inesquecível Fernando Vieira de Mello me ensinou que uma pessoa incapaz de defender a própria dignidade jamais vai defender uma ideia, seu público ou uma matéria. Mas isso é coisa de museu. Meu ex-chefe já é nome de túnel em São Paulo e essa coisa de defender a própria dignidade não pega bem entre os jornalistas faz muitos anos.
Você deve ter visto como houve uma onda de reações a essa fala do presidente. Teve até homem feito, vacinado, barbado, se dizendo "chocado". Afinal, trata-se realmente uma novidade no comportamento de Jair Bolsonaro. Quem poderia imaginar esse tipo de reação dele, principalmente com a imprensa, não é mesmo?
Tenho o maior respeito por personalidades e autoridades que, nesta e em outras inúmeras ocasiões, alertaram que não é digno do cargo nem da convivência humana se portar dessa forma. Além do mais, usando agressividade para fugir de respostas que são devidas ao povo. Só que eu não tenho mais paciência para quem sempre calou diante desse tipo de comportamento, estigmatizou quem se defende e agora vem posar de vestal nas redes sociais. E isso é o que mais vimos.
O que leva muita gente a ficar agora nas redes sociais repetindo a mesma pergunta que o repórter fez a Jair Bolsonaro não é a intenção de defender a liberdade de imprensa e a civilidade nem de obter uma resposta. Trata-se da sensação de pertencer a um grupo ou movimento que faz algo virtuoso e, melhor de tudo, de forma fácil e em que não é preciso arriscar nada para se contrapor a algo injusto.
Esse movimento que dá a sensação de fazer o bem ou fazer parte de um grupo que é essencialmente bom serve também para que muitos indivíduos consigam se limpar na própria lama. Se, para a maioria dos que se empolgam em ficar postando frases prontas, pode se tratar de algo libertador, uma novidade ou até uma ocupação para essa época de pandemia, também há a tentativa de afetar virtude dos que sempre calaram em situações semelhantes, mesmo podendo agir.
É lamentável que um presidente da República se manifeste com o palavreado de um adolescente infrator? Claro que sim. Só que sempre foi, inclusive quando a moda era jornalista fingir que não via e segregar quem reage com altivez e defende a própria dignidade. Os eloquentes de hoje eram os calados em 2014, no episódio da repórter da Rede TV!
Voltemos a abril de 2014. Manuela Borges, então repórter da Rede TV!, era uma no círculo de jornalistas que entrevistariam o então deputado Jair Bolsonaro sobre os 50 anos do Golpe Militar de 1964. Repetindo o comportamento que sistematicamente adotou desde 1991, ficou irritado e começou a xingar a repórter, que se defendeu com altivez e elegância.
Ao ver esse vídeo, tenho a mesma sensação daquele vídeo famoso do motoboy Matheus. Um homem poderoso, já escolado em dizer o que quiser sem enfrentar nenhuma reação, resolve xingar uma moça de "idiota, analfabeta e ignorante". Ela se defende com classe. Adivinhe o que fazem os demais jornalistas ao redor? Fingem que nada está acontecendo durante os quase 2 minutos de xingamento, numa cômoda postura de conivência silenciosa.
Quando não é alguém famoso na mídia, de família tradicional ou protegido de algum figurão, coincidentemente a defesa não existe. Aliás, a pessoa passa a ser estigmatizada. Manuela Borges teve de abandonar a profissão após esse vídeo ser usado, sem a autorização dela, em campanhas políticas. Já viu os vídeos e postagens em apoio à colega? Não? Nem eu.
A única menção de apoio foi a do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, que escreveu uma nota. Não teve videozinho de famoso, artista, postagem indignada de colega, movimento de "ninguém larga a mão de ninguém", nada disso. A então repórter pensou em processar o deputado, foi demovida pela empresa onde estava empregada e não se arrepende. Quem já passou por situação semelhante compreende perfeitamente: quem é ela para ter apoio dos colegas?
Não se iludam, a maioria que passa por essas situações não teve, não tem nem terá apoio de quem hoje se faz de indignado nas redes sociais. Aqui estamos falando de políticos e jornalistas mas, sob o ponto de vista do dia-a-dia, é de uma pessoa no trabalho. Quantas vezes, no seu trabalho, você sofreu humilhações do tipo? As pessoas que postam frases de efeito e palavras de ordem nas redes sociais te defenderam quando você precisou?
A movimentação que vemos não é de defesa e, na maior parte das vezes, nem de repúdio ao ato. Redes sociais não são plataformas de informação nem de debate, são mecanismos de publicidade direcionada fomentados por emoções empolgantes. É empolgante fazer parte de uma campanha assim, em que todo cidadão comum pode colocar um presidente da República na parede e ainda fazer parte de um grupo cheio de gente famosa. E isso, vejam bem, não tem nada de errado, só não tem o peso político que se quer dar.
A árvore se conhece pelos frutos. Qual será a grande mudança que essa movimentação toda pelas redes conseguirá? Arriscaria dizer nenhuma, mas obviamente toda ação humana gera alguma mudança no mundo. Desta vez, temos a prova cabal de que jornalistas, artistas e intelectuais ainda não são páreo para a inteligência digital do bolsonarismo.
Todo o debate em torno de Fake News, que inclui CPMI e até o Inquérito do STF gira em torno da distorção do espaço público. Trocando em miúdos: nós imaginamos que um perfil de rede social equivale a uma pessoa mas, como a tecnologia pode dar a uma pessoa o controle de milhares de perfis, são criados falsos consensos e falsos dissensos. Agora, boa parte dos jornalistas acaba de jogar essa teoria por terra ao comemorar o grande número de postagens contra Bolsonaro como se fosse manifestação legítima da vontade popular. Arrogância é bicho que come o dono.
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