O evento trágico e surreal de ontem envolvendo policiais amotinados e o senador Cid Gomes não termina neles, escancara a necessidade urgente de valores e moralidade na sociedade brasileira. A lógica da polarização, do nós contra eles, parece ter corroído os valores morais do brasileiro ao condicionar todo e qualquer posicionamento de uma pessoa à lógica de pertencer a um pólo.
É grave tanta gente simplesmente aceitar que uma nação se divida entre apoiadores de motim militar e apoiadores de ameaça de atropelamento com retroescavadeira. Como chegamos a esse nível de degeneração do debate público?
Os fatos, primeiras vítimas sempre em uma sociedade polarizada, são bem mais complexos e multifacetados. Não é porque um conflito tem dois lados que necessariamente um é certo e o outro errado. Podem estar os dois certos e também podem estar os dois errados. Discordar de um não implica necessariamente concordar com o outro e vice-versa. Quando nos agarramos às emoções da raiva e da urgência, pisoteando a lógica, estamos coletivamente nos desmoralizando como sociedade civil.
Um motim de militares é inadmissível. Um senador da República subir numa retroescavadeira e ameaçar atropelar os outros é inadmissível. Um agente do Estado quebrar a hierarquia e atirar numa autoridade está além disso, é um risco para todos nós.
A família Gomes tem uma forma performática de praticar a política, não gostam de intermediários na solução de conflitos. Cid Gomes virou ídolo quando esbravejou, no meio de um evento do PT, "O Lula tá preso, babaca!". Embora a performance na escavadeira não me desça bem, é totalmente compatível com o comportamento dele há muitos anos e não creio que tenha sido algo recebido como surpresa pela população de Sobral nem do Ceará.
As performances de Cid Gomes já são lendas urbanas consagradas pelo povo cearense. É normal ele se enfiar no meio de greve para bater boca com servidor. Há quem conte que um doente mental fugiu da internação e não havia ninguém para pegar: aparece ali o governador, sobe no telhado e leva o homem de volta.
A mais conhecida é a do pitoresco mergulho na adutora. Houve um rompimento em Itapipoca, a cidade ficou sem água e não se encontrava engenheiro que soubesse consertar. Adivinha a profissão de Cid Gomes? Engenheiro. O governador tirou a roupa na frente de um amontoado de gente, mergulhou na adutora e consertou:
O humor cearense obviamente não pouparia o governador, que ganhou uma montagem em que participa da antiga abertura do Fantástico com Isadora Ribeiro.
O brasileiro é pródigo em esquecer fatos recentes. De alguma maneira, a febre das redes sociais espalhou como se fosse novidade o motim militar no Ceará. Os fatos mostram que a atuação de milícias na polícia cearense e a defesa aguerrida que fazem dos motins é algo que vem de longa data. Agora, a violência está escalando. Em Sobral, além de balear o senador, policiais mascarados aterrorizaram a cidade o dia inteiro, forçando os comerciantes a um toque de recolher, como fazem os traficantes.
Houve motins em outras cidades cearenses além de Sobral. No Crato, que não teve visita de político importante, a revolta dos amotinados foi contra a população mesmo. Um policial foi preso por atear fogo ao carro de uma moça após ela ter postado numa rede social que é contra a greve da polícia.
Em janeiro de 2012 houve uma greve da PM do Ceará que obviamente foi declarada ilegal. A desembargadora Sergia Miranda determinou que os amotinados voltassem imediatamente ao trabalho, já que militares não podem fazer greve. Logo em seguida, um casal de tios-avós dela foi agredido e ameaçado. Chegaram ao requinte de crueldade de colocar fogo no cabelo da senhora e ameaçar queimá-la viva. Na época, a segurança era garantida por uma operação especial do Exército.
Dá desesperança perceber que, devido à polarização política, pessoas honestas estão sendo levadas a defender organizações criminosas. Há quem esteja dizendo que existe "legítima defesa" em motim de milícia. Não há.
Apontar isso não é validação ao espetáculo promovido pelo senador Cid Gomes que, felizmente, não lhe custou a vida. O tiro desferido contra ele mostra que a tropa já abandonou a hierarquia e a disciplina, não obedece o comando, não segue os parâmetros de reação segundo o qual foi treinada. Policiais militares têm o dever de manter a lei e a ordem. Se nem diante de uma autoridade fazem isso, imagina com os cidadãos comuns.
Torço para que a sociedade brasileira não continue inebriada pela polarização. Ela é encantadora porque dá a muitos a situação de superioridade por apontar os defeitos do lado oposto, é como se ele próprio ou seu lado não tivessem falhas. Somos craques em optar pelo cômodo em vez do certo. Está na hora de abandonar o conforto e ter disciplina na manutenção dos valores morais.
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