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O ato mais importante dos últimos dias acabou soterrado pelo volume de declarações bombásticas e bate-bocas sobre uma pauta que não mudou nada na vida de ninguém e nem será decidida tão cedo, a tal da lei das Fake News. Estamos no meio do evento mais grave de saúde pública que todas as pessoas vivas no mundo já presenciaram e, no momento, o Brasil tem pela primeira vez mais desempregados que empregados. Nesse contexto, se garantiu que não se mexe um milímetro nos salários de ninguém do funcionalismo público e ponto final. Não há revolta popular.
Se temos um sistema que consegue manter privilégios mesmo diante de uma catástrofe e do drama financeiro de milhões, é preciso entender como ele funciona. É uma das poucas coisas eficientes pelas quais o povo brasileiro paga com o dinheiro dos impostos.
O Supremo Tribunal Federal decidiu que não se pode fazer nenhum tipo de redução nos vencimentos de servidores públicos, nem aqueles que ganham acima do teto, aconteça o que acontecer durante a pandemia. É o mesmo tribunal que, em decisão monocrática da ministra Rosa Weber, decidiu manter preso por mais tempo que a maioria dos réus da Lava Jato um jovem que furtou 2 shampoos no valor de R$ 10. Já o ministro Gilmar Mendes colocou um ponto final na saga do furto da picanha: "Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de furto de uma peça de picanha da marca Naturafrig, três tabletes de caldo da marca Arisco, sendo um de carne e dois de frango, e uma peça de queijo muçarela da marca Porto Alegre, avaliados em R$ 135,73”, sentenciou.
Qual a relação de uma coisa com a outra? Há uma grande diferença na forma como se trata as duas castas diferentes de cidadãos da sociedade. O funcionalismo público é uma casta, mas não no sentido em que geralmente se pensa, o dos salários e privilégios. Isso é de uma minoria do funcionalismo. A maioria ganha pouco e faz muito, como policiais, professores e enfermeiros. Mas continuam sendo uma casta no sentido de meter medo no poder estabelecido. Eles são muitos, concursados e organizados. A movimentação deles pode erguer e destruir carreiras políticas. Embora os que ganham menos não consigam tudo o que querem e, verdade seja dita, nem tudo o que merecem, melhor não esticar demais a corda.
A sociedade civil brasileira tem feito esforços de organização sobretudo nos últimos anos, mas ainda se deixa iludir por conversa, sabe muito pouco sobre o funcionamento da política e aprende nada sobre isso na escola. O resultado é a diferença de tratamento nas decisões que mais importam nas horas de desespero. Enquanto não se toca em nada dos direitos do funcionalismo, o cidadão comum não sabe o que será de seu destino caso, por desespero ou desatino, cometa a bobagem de tentar levar algo escondido de um mercado. Pode ser que tenha de pagar, devolver ou, sei lá, fique três anos preso. Depende de quem pegar o processo. É esse o cuidado com essas vidas.
Como se chega nesse estado de coisas? Com muita deformação ao longo de muito tempo. Mas não custa enxergar algumas formas de engano que têm sido eficientes e que precisamos reverter. A primeira é começar a enxergar quais são os assuntos que realmente podem mudar a nossa vida ou não e focar nos que podem.
No livro "The Image", que Daniel Boorstin escreveu há quase 60 anos, ele alertava para a criação dos pseudo-fatos. Diretor da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, acompanhava as primeiras entrevistas coletivas organizadas por políticos. Aquilo dizia ao público o que eles queriam dizer, não o que mudava a vida das pessoas. Imagine o nível de sofisticação deste sistema em 2020.
Quais foram os assuntos mais debatidos durante a última semana? Lei das Fake News, o currículo do ex-ministro Decotelli e o cachorro de Michelle Bolsonaro. Obviamente são temas que merecem atenção, são de interesse público e devem ser noticiados, não é esse meu questionamento. Eu questiono é a importância dada a eles, principalmente se comparada à questão dos vencimentos dos funcionários públicos diante da situação de caixa dos Estados e municípios na pandemia. Faltam remédios básicos nas UTIs de diversos Estados brasileiros.
Embora a Lei das Fake News piore o problema que pretende atacar e cerceie o cidadão em vez de conter um esquema oculto entre plataformas e patrocinadores, ela não seria decidida esta semana. É apenas a primeira votação. Muito provavelmente, ela será modificada na Câmara e nem é devido ao conteúdo, é porque não foi debatida com ninguém. Uma medida dessa importância não é feita sem ampla discussão. O Marco Civil da Internet foi discutido durante 3 anos. Modificada na Câmara, volta ao Senado. Provavelmente haverá ações judiciais e questionamentos do Executivo sobre a constitucionalidade. Era mesmo tão urgente falar disso o dia todo? Para nós não, para o Congresso sim.
Tanto quem era contra quanto quem era a favor da Lei das Fake News deveria estar fazendo outra coisa: criando uma regra para estabelecer como e em que casos podem ser cortados salários do funcionalismo público durante a pandemia. Alguém percebeu que o Congresso Nacional não fez isso? O funcionalismo público.
Será que a equipe econômica do governo poderia ter se reunido com os governadores para discutir isso? Tanto os governadores quanto o governo federal poderiam ter provocado a reunião. Que tal colocar as cartas na mesa, discutir a situação objetiva de cada um e começar a estabelecer regras para os casos em que seja necessário cortar? É preciso decidir onde se corta primeiro, se ficaria como crédito depois, qual o impacto na aposentadoria. Também poderia partir do Executivo a proposta, já que o Legislativo não fez.
Pois é, mas a gente estava numa empolgação louca com o currículo do ministro Decotelli e com o cachorro da primeira-dama, que teve até direito a vídeo oficial de despedida na sala do Presidente da República, com a presença ilustre de Jair Bolsonaro. Sinto desapontar mas, por mais lindo que seja, o cachorro de Michele Bolsonaro não muda nada nas nossas vidas. O currículo do ex-ministro da Educação é uma história bizarra sim, mas ele é o único da nossa história que caiu por causa disso, entre os muitos que fizeram. Não sabemos se o destino da educação brasileira será melhor ou pior com a queda dele, essa é a triste verdade.
Enquanto nos empolgávamos com os espetáculos de não-fatos, aqueles que não definem nossas vidas e nossas urgências, esquecíamos o que importa. O que fazer com os pagamentos ao funcionalismo, que são irredutíveis de acordo com a Constituição é a prioridade e nós não cobramos de quase ninguém.
É verdade que muita gente ficou indignada diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, que terminantemente proibiu a redução dos vencimentos. Há quem argumente que, durante uma pandemia inédita na história, a questão pode e deve ser revista. Mas será revista de acordo com quais critérios? Os outros poderes, Legislativo principalmente e Executivo talvez, é que teriam de criar esses critérios. Eles criaram o que sabem que a gente gosta: circo. Nós caímos.
Não veja essa movimentação como uma grande trama, como algo planejado. É o jogo do poder a que se acostumam todos que têm a oportunidade de desfrutar dele. Mais importante que tomar decisões justas é fugir de decisões impopulares, mas não decidir pega mal. As estratégias para acobertar a inércia são aprimoradas cada vez mais. Uma coisa é um voto inexplicável na tal da Lei das Fake News que muito provavelmente não terá consequências. Outra coisa é inventar uma regra para tirar penduricalho de todos os juízes e promotores do Brasil. Avaliem como seria o dia seguinte do Congresso Nacional, dos Governadores e do Governo Federal.
Na Roma Antiga se criou a política do "pão e circo", em que a população era distraída com espetáculos e distribuição de comida, numa medida em que já não ligava mais para o que os governantes faziam. Com o aprimoramento das mídias e da tecnologia, a gente passa a descobrir que, se o circo for bom o suficiente, não precisa nem do pão.