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"Cão que ladra não morde", disse o poeta minutos antes de tomar uma mordida de cachorro. A internet e sua possibilidade de bancar o valente sem sofrer consequências nos trazem um novo fenômeno social, a ameaça. Existe em tudo quanto é canto. Já vi grupo anônimo de maternidade juntar perfil falso para perseguir uma influencer que admitiu deixar seu bebê usar chupeta. Tinham endereço dela, nome do bebê, do porteiro da creche e tudo mais.
Você já deve ter visto coisa parecida porque não ocorre só com influencers ou famosos. A prática já é tão manjada que virou lugar comum na ficção. Todo filme de psicopata agora tem a parte em que ele ameaça a pessoa pela internet. Alguns têm a parte em que ele consegue deixar a pessoa na rua da amargura mandando mensagens com perfis falsos para o emprego da pessoa. Quando a coisa chega ao ponto de virar trecho de filme é porque realmente a moda pegou.
Os estudiosos de dados mostram que a moda de ameaçar os outros pegou mesmo nos últimos 5 anos. E vocês sabem que toda crise traz uma oportunidade. Essa oportunidade é a de mentir, confundir crítica com ameaça. É algo bem democrático, usem à vontade. Tem a pessoa criticada que alega falsamente ter sido ameaçada. Também tem a pessoa que ameaça e diz que só estava criticando. Os únicos prejudicados pela nova moda serão as pessoas que realmente foram ameaçadas.
Ameaças reais são mais comuns em profissões que dependem muito da imagem da pessoa. Como o profissional precisa ficar em evidência para trabalhar, é uma forma eficiente de criar vagas usar essa exposição para fazer ameaças. Líderes de radicalização online ensinar que é bem mais efetivo atacar mulheres e isso não tem nada com machismo ou fragilidade, é psicologia.
Ataques racionais são chatérrimos, bons mesmo são os emocionais, aquela coisa meio Paola Bracho. E quais são os nossos traumas emocionais mais significativos? Mãe e amor. Se você conseguir fazer com que as pessoas transfiram para uma mulher específica seus instintos mais primitivos, elas vão agir cegamente. Por isso o número de mulheres selecionadas para ataques do tipo "separar a ovelha do rebanho" é maior, porque dá mais certo. Isso não significa que homens não sejam atacados, eles são. Mas a maioria dos ataques é no estilo de sempre, pré-internet.
Um estudo feito na Universidade de Ohio e publicado pelo Trollbuster's e International Women’s Media Foundation (IWMF) mostra como a moda da ameaça está mudando o mercado jornalístico. O impacto é maior nos mais jovens. Quase metade das repórteres já mudaram de área e 1/3 pensam em mudar de profissão devido às ameaças nos últimos 5 anos. Mas o que diferencia essas novidades de xingamentos ou críticas? O estudo também mostra.
Depois que eu ganhei os primeiros processos judiciais contra integrantes de milícias digitais, muita gente me procura pedindo ajuda. Entre muitos pedidos sérios e pertinentes, como difamação por concorrentes ou perseguição direcionada a uma pessoa, há outros curiosos que começam a aparecer. Influencers entram em pânico achando se tratar de uma ameaça real quando alguém posta numa rede social algo como "você deveria morrer". Vi gente dar entrevista dizendo que estava sendo perseguida depois de xingamentos do tipo "velha, gorda e vagabunda" em reação a um artigo ou postagem.
Acredito que pessoas xingadas por uma multidão ou que vejam posts do tipo "você merece morrer" realmente podem até ficar assustadas. Não é isso, no entanto o tipo de ameaça ou assédio que está mudando o mercado da comunicação no mundo todo. O estudo mostra exatamente quais são as ações que levam metade das mulheres jornalistas - eu inclusive - a não publicar mais sobre determinados temas. Também mostra quais são as consequências físicas, mentais, familiares e profissionais decorrentes de virar um alvo.
Quais as ações que são chamadas de "assédio" ou "ameaça" virtual? Vamos à lista:
- Grampear o telefone e gravar conversar do alvo
- Fazer ameaças de morte críveis
- Passar-se pelo alvo nas redes sociais
- Enviar ameaças para o número de telefone privado
- Atacar e hackear o site pessoal do alvo
- Interceptar e-mails do alvo
- Expor informações pessoais do alvo (como endereço residencial)
- Infectar o computador do alvo com vírus
- Roubar dados de arquivos pessoais do alvo
- Tentativa de chantagem
- Deixar símbolos ou ameaças por escrito em locais como a casa, a mesa de trabalho ou o carro
- Espalhar imagens pornográficas, reais ou deep fake
No Brasil, é comum que se chame de "ofensa na internet" ou "crítica" esse combo de carinho iniciado nas ameaças com dados pessoais e terminado na montagem de deep fakes pornô. Segundo o estudo, 92% das jornalistas notaram que esse tipo de abordagem aumentou nos últimos 5 anos. Outro dado, apontado por 80%, é de que está em crescimento a tentativa de hackear contas pessoais de todo o tipo e roubar dados do computador. Se essa onda de amor for feita de forma organizada por um grupo, é muito fácil que ele consiga abrir uma vaga para alguém do coração.
As vítimas desse tipo de "ofensa" ou "crítica" reportam sempre as mesmas reações psicológicas e emocionais após a experiência. São sonhos repetitivos sobre o ataque, episódios de pânico, impossibilidade de conexão emocional com as pessoas próximas, tendência a se afastar do contato humano, perda de interesse nas atividades de que gostava, culpar-se de forma repetitiva pelo que aconteceu. Também há reações físicas, como insônia e arritmia cardíaca.
Mais de 80% das mulheres jornalistas tomaram alguma atitude quando se tornaram alvos. Mesmo assim, a carreira de 1/4 foi impactada negativamente e quase metade passaram a evitar trabalhar com temas que podem gerar ataques. "Jornalistas mulheres que sofrem abusos relatam problemas de saúde, psicológicos, autocensura e preocupações de longo prazo sobre suas escolhas profissionais. Elas podem fechar ou evitar contas de mídia social. E o problema ainda não tem resposta eficaz quando a atividade é relatada à administração e às instituições da lei." conclui o estudo.
A vida em rede, com hipercomunicação, é nova. No jornalismo, a indústria antiga que mais rapidamente se fundiu com as redes sociais, todos os prós e contras aparecem primeiro. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Avalie se a gente acabar criando um mercado de recolocação em que você mira na pessoa que está na vaga pretendida e ataca até derrubar? Seria moralmente reprovável, mas está aí funcionando diante dos olhos de todo mundo e passando batido.
Separar o joio do trigo e não ficar com o joio é um grande desafio para todos nós na era digital. Falsas alegações e vitimismo levam muita gente a subestimar o poder dos ataques online. São inúmeros os casos de pessoas poderosas que esculacham um cidadão comum e depois chamam reações normais de ameaça. Não fossem tantos e tão importantes os casos reais, talvez as Big Techs tomassem alguma atitude diante deles. Essa é a principal reclamação de grandes e pequenos influenciadores. Nossas vidas estão interligadas por plataformas que agem da maneira que querem. Quanto mais avançarmos na tecnologia mais teremos de nos abrigar nos valores humanos, ética e virtudes. Parece ser a única saída.