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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Volta às aulas: vamos parar a lacração e debater?

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Nos debates apaixonados em redes sociais, todos parecem ter uma resposta claríssima sobre voltar ou não às aulas já que, como diz a máxima, todo problema complexo tem uma solução simples e errada. Não tenho opinião formada sobre o que deve ser feito, mas acredito que precisamos parar de debater na base do chilique e agir como adultos com relação às nossas crianças.

Ninguém ainda encontrou no mundo a solução para a infância durante a pandemia. Escolas são tradicionalmente, em quase todas as culturas, o meio de inserção social das crianças, além do lugar em que se aprendem as habilidades necessárias para sonhar com o futuro. No início, o mundo inteiro fez o que era preciso numa emergência pandêmica, suspender as aulas e mandar as crianças para casa. Mas, com os meses passando, começam a surgir outras "emergências".

É inútil para as crianças que os adultos se dediquem a atacar uns aos outros porque estão agarrados à ideia de abrir ou não abrir escolas. Nós temos o dever de zelar pelas crianças e identificar todos os problemas a que têm sido submetidas devido às necessárias medidas de proteção contra o coronavírus. A obrigação de sanar esses problemas é nossa, dos adultos.

O Instituto DataSenado acaba de divulgar uma pesquisa mostrando que 63% dos pais acreditam que o nível da educação caiu durante a pandemia. Nas escolas públicas, 40% dos pais dizem que as aulas foram majoritariamente suspensas. A internet tem sido um meio importante para manter pelo menos uma rotina de estudos no mundo todo. Segundo a pesquisa, 26% dos estudantes da rede pública e 4% dos estudantes da rede particular não têm acesso à internet em casa. Esse é apenas um ponto a se levar em consideração, há inúmeros outros.

A pandemia já teve um forte impacto econômico no Brasil, temos mais pessoas desempregadas do que empregadas. O Judiciário continua promovendo ações de cobrança e despejo, o que afeta a dinâmica das famílias, sobretudo as mais impactadas pela pandemia. As condições de moradia e alimentação tendem a piorar para as crianças e esse impacto não pode ser subestimado.

Boa parte das crianças brasileiras já tinha a escola como uma das principais fontes de alimentação. Há municípios que se organizaram para distribuir a comida, outros não. Pouco ou quase nada sabemos sobre a distribuição familiar dessa comida num contexto de crise sem precedentes. Além disso, se o preparo da comida passa a ser em casa, o preço do gás vira um peso grande para as famílias de baixa renda.

A falta de dinheiro, aliada ao excesso de pessoas sob um mesmo teto, falta de conforto no domicílio familiar e, em muitos casos, necessidade de vários adultos trabalharem em casa nesse contexto, tem um impacto violento na vida das crianças, que está sendo subestimado. É nossa responsabilidade encarar e resolver esses problemas, somos os adultos.

Já me perguntaram o que é pior, viver isso ou morrer de coronavírus. Trata-se de pergunta retórica destinada a tentar atribuir a quem pergunta algum tipo de virtude, não a resolver problemas das crianças. Também perguntam muito se eu mandaria meu filho de volta à escola. Essa, creio, é a medida que baliza a opinião de muitos formadores de opinião e formuladores de políticas públicas. E é evidente que, mesmo que voltem as aulas presenciais, eu não vou mandar meu filho à escola.

A maioria dos formadores de opinião e formuladores de políticas públicas também jamais mandaria o filho de volta às aulas presenciais este ano. Qual o motivo? Somos privilegiados o suficiente para resolver, sem a necessidade de apoio da sociedade e do Estado, os problemas que estão martirizando os filhos de milhões de brasileiros. Considerando que, se não é digno para o meu filho, não é digno para os demais, é que proponho a discussão.

Não se trata de voltar aula presencial ou não, mas de criar meios para resolver outros problemas gravíssimos que não atingem o meu filho, não atingem os filhos de formadores de opinião e formuladores de políticas públicas e, espero sinceramente, não atinjam os seus filhos. Mas somos, como sociedade, responsáveis por garantir a dignidade de todas as crianças, inclusives aquelas nascidas em famílias que, por qualquer razão que seja, não têm condições de fazer isso nesse momento.

No Brasil, 53,8% das vítimas de estupro são menores de 13 anos de idade e, na quase totalidade dos casos, os estupradores são pessoas conhecidas e que convivem com as vítimas na residência delas. O que acontece quando essas crianças não vão à escola e tem mais pessoas em casa e transitando nas comunidades em que vivem? Não sabemos, temos de saber e, se necessário, dar uma solução.

Muitos dos casos de violência contra criança, inclusive de violência sexual, são detectados nas escolas, exatamente devido a esse perfil criminológico. Como a maioria dos agressores de criança faz parte do convívio da família, se não houver um flagrante, é demorado até que alguém desconfie do que está acontecendo. O criminoso tem todas as informações de que precisa para esconder suas atividades e manipular a vítima a não contar. Agora, as crianças estão confinadas nesse universo.

Se as crianças das famílias com melhores condições sociais e financeiras têm como principais problemas o risco de contágio do coronavírus e a qualidade da educação, a grande maioria das crianças brasileiras tem uma fila enorme de outros problemas a serem resolvidos. Não podemos subestimar a urgência e o impacto deles.

A professora Izabel Pessoa que, em alguns dias, assumirá a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, defende, segundo a Agência Brasil, que comecemos a pensar no Ensino Híbrido. Ficamos presos em um debate, que é interminável, sobre educação presencial e à distância. Ignorar a pandemia e voltar com a educação presencial seria uma carnificina. Atualmente, verdade seja dita, as escolas não dão conta de conter nem surto de piolho, mesmo na rede particular. Ignorar os outros problemas e manter apenas a educação à distância como alternativa a todo o processo escolar seria uma violência com consequências graves para a próxima geração.

Sob o ponto de vista da Educação, a modalidade presencial não exclui a virtual e vice-versa, isso é o Ensino Híbrido. Pensar em modelos viáveis à medida em que compreendemos mais como nos proteger do coronavírus pode ser uma boa ideia caso a vacina não chegue tão cedo quanto torcemos para que chegue. Se não podemos mandar todas as crianças de volta à escola, podemos escalonar? É possível misturar ensino à distância com alguma experiência presencial? São questões que, no mundo todo, ninguém ainda conseguiu responder e, aparentemente, terão respostas locais muito diferentes.

Nossa única certeza é a do fim das certezas. Respostas fáceis, daquelas sob medida para fomentar debates acalorados com base em intenções ocultas ou no caráter do oponente são um luxo do passado. O circo do debate vazio é uma diversão ancestral da humanidade e seguirá fazendo sucesso, mas não resolverá nossos problemas. Principalmente no caso das crianças, passou da hora de fechar o picadeiro e chamar os adultos à responsabilidade.

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