A disputa de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco a respeito da forma como devem tramitar as medidas provisórias na Câmara esconde um vício muito mais profundo e que tem sido cada vez mais inerente aos comandos da Câmara dos Deputados e do Senado: o desrespeito aos ritos estabelecidos em seus respectivos regimentos e, até mesmo, na Constituição. As ilegalidades promovidas por Lira e Pacheco, mas não por eles inauguradas, foram agravadas com a pandemia.
Dada a necessidade, a partir de março de 2020, de fazer o Parlamento funcionar com seus membros nas bases, trancados em casa, uma série de ritos e protocolos foram alterados, abreviados ou simplesmente eliminados. Foi a chance de os líderes partidários, cujo poder havia sido duramente desafiado nas eleições de 2018, recobrarem e redobrarem suas forças após um 2019 muito difícil. À época, no calor do Plenário e com a pressão dos demais colegas, era muito mais fácil um parlamentar votar diferentemente da orientação do líder partidário. Com as votações pelo celular em razão da pandemia essa capacidade de influência reduziu drasticamente. Além disso, os poderes das presidências das Casas, encasteladas em Brasília, também se agigantaram. É esse o caso da tramitação das medidas provisórias, cujo estopim de crise só se acendeu porque uma Casa julgou-se preterida em relação à outra na balança de poder.
Assim como a sociedade se adaptou a um “novo normal”, também o Congresso precisa fazê-lo, e o “normal” de um Parlamento sempre estará insculpido em seu regimento e na Constituição
Antes da pandemia, medidas provisórias (MPs) seguiam o rito estabelecido pela Constituição. Assim que editadas e publicadas pelo governo, eram enviadas a uma comissão parlamentar mista do Congresso Nacional composta por doze deputados e doze senadores. Os congressistas eram indicados pelos partidos políticos observando a proporcionalidade e as comissões escolhiam seu presidente e relator. Com vigência máxima de 120 dias, as MPs precisavam passar pelo crivo da comissão especial antes de serem submetidas ao Plenário da Câmara dos Deputados. De lá, quando aprovadas, seguiam ao Senado e, somente então, iam para a sanção presidencial se aprovadas sem alteração ou, caso contrário, retornavam à Câmara para posterior sanção.
Com o advento da pandemia de Covid-19 e a subsequente paralisação dos trabalhos de todas as comissões, uma liminar de Alexandre de Moraes, do STF – mais uma vez intervindo no processo legislativo –, autorizou em abril de 2020, a adoção de um rito simplificado para a tramitação das MPs. A partir de então, os textos poderiam ser avaliados por apenas um relator no plenário da Câmara e um relator no plenário do Senado. Em ato conjunto das Mesas das duas Casas, os então presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre regulamentaram a conveniente autorização liminar judicial sem que se fizesse a devida alteração constitucional pelos Plenários das duas Casas.
Se o Congresso quer legislar para a sociedade deve começar por respeitar as regras que definem o seu próprio funcionamento e que foram elaboradas também por parlamentares.
Começou torto: o que estava previsto na Constituição foi desfeito por um ato conjunto decorrente de decisão do Supremo, não por nova emenda constitucional. O ato estipulou, por exemplo, sem autorização constitucional para tal, regras detalhadas de tramitação, como o prazo de apenas dois dias para apresentação de emendas. No entanto, parte importante da decisão judicial que escusava a edição do ato não foi questionada: que a tramitação especial ocorreria apenas durante o período da pandemia.
Na prática, medidas provisórias que antes eram debatidas em colegiado de 24 congressistas e, depois, analisadas em Plenário com muito mais profundidade e conhecimento dos demais parlamentares, agora são conduzidas por apenas um deputado na Câmara e um senador no Senado, ambos escolhidos a dedo e tão somente pelos presidentes de cada Casa. Frequentemente, os relatórios são apresentados em Plenário minutos antes da votação, contendo modificações substanciais, algumas incluídas de última hora, justamente para evitar repercussão negativa junto à opinião pública. É acintoso! Para os senadores, tanto pior: se antes podiam participar do debate inicial na comissão mista, agora se ressentem do fato de receber o texto pronto da Câmara para analisar no Senado em no máximo 30 dos 120 dias de suas vigências.
A Casa de Leis brasileiras, que decide o que a sociedade deve ou não deve fazer, com frequência não faz aplicar internamente o que dizem as suas próprias leis ou mesmo a Constituição.
É importante lembrar que o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus se encerrou em 31 de dezembro de 2020. Já a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional teve seu fim decretado em 22 de maio do ano passado. Ou seja: sob qualquer marco temporal determinado, o Congresso Nacional segue adotando trâmites do período pandêmico muito depois do seu fim – e o exemplo da tramitação das medidas provisórias é apenas um de tantos que se poderiam dar. Se o formato anterior de tramitação das MPs merece ser rediscutido, que o seja, mas com a devida mudança constitucional. Seguir utilizando agora um modelo que serviu – mal, na minha opinião – no período pandêmico é desrespeitar a Constituição.
A ameaça representada pelo coronavírus já passou há muito tempo, mas o Parlamento nacional adquiriu sequelas graves. As lideranças das duas Casas, acostumadas e até mesmo atendidas por grande parte dessas alterações que concentraram poder em suas mãos, não fazem esforço para tratá-las. Desmerecem, assim, o devido processo legislativo, seus próprios regimentos internos e, claro, os parlamentares. Numa atualização do “casa de ferreiro, espeto de pau”, em vez do desleixo geralmente atribuído ao ditado, trata-se aqui de desrespeito intencional de suas próprias leis por parte da Casa que faz as leis que a sociedade brasileira deve seguir. Em outras palavras: a Casa de Leis brasileiras, que decide o que a sociedade do lado de fora do Congresso Nacional deve ou não deve fazer, com frequência não faz aplicar internamente o que dizem as suas próprias leis (seu regimento interno) ou mesmo a Constituição.
No caso da tramitação das medidas provisórias, o escracho regimental veio à tona por conta do conflito entre os interesses de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, entre os interesses de determinados líderes na Câmara e do Senado. Sem entrar no mérito da discussão sobre o melhor método para a tramitação das medidas provisórias (que, aliás, merecem um artigo à parte para tratar da incoerência de sua existência no nosso sistema presidencialista de governo), é preciso que o processo constitucional seja respeitado. Há males que vêm para o bem e crises institucionais que deixam resultados positivos. Tomara que seja este o caso aqui.
A pandemia já passou, felizmente, e faz tempo. Assim como a sociedade se adaptou a um “novo normal”, também o Congresso precisa fazê-lo, e o “normal” de um Parlamento sempre estará insculpido em seu regimento e na Constituição. Caso o rito das medidas provisórias, e tantos outros alterados durante a pandemia, mereça rediscussão, que se faça no ambiente correto de uma comissão especial (não de um Grupo de Trabalho, outra excrescência inventada ao arrepio do regimento) e que se altere devidamente a Constituição. Tentar manter soluções temporárias e que hoje são plenamente ilegais e inconstitucionais na base da guerra política depõe contra a respeitabilidade da própria Casa de Leis brasileira. Se o Congresso quer legislar para a sociedade, deve começar por respeitar as regras que definem o seu próprio funcionamento e que foram elaboradas também por parlamentares.
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