Sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília.| Foto: Divulgação/ CNJ
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Muito se fala sobre a "defesa da democracia”, mas poucos são aqueles que conceituam com clareza o que é democracia. Em primeiro lugar porque há ampla ignorância sobre o que é, de fato, democracia – um termo consagrado na Ciência Política e cujas implicações vão muito além da etimologia de “governo do povo” a partir das palavras gregas kracia e demo, respectivamente. Em segundo lugar, e em decorrência do motivo anterior, porque há divergências absolutamente legítimas na própria Ciência Política sobre o que define, de fato, uma democracia. Houve até mesmo pesquisador que criasse um novo termo para tentar resolver o problema dos diferentes níveis de democratização entre os países, como foi o caso de Robert Dahl ao instituir o famoso conceito de poliarquia. A multiplicidade de interpretações, portanto, leva muitos a terem dificuldade de bem definir o que é e o que não é uma democracia.

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O tripé que orienta a definição mais básica de democracia é aquele que a adjetiva de constitucional, liberal e representativa. Ou seja: democracia como a forma de governo em que o império é da lei, não dos homens; em que as garantias fundamentais e liberdades individuais da cidadania são asseguradas; e em que um corpo político eleito representa a população como um todo. Mas há aqueles que, em terceiro lugar, não querem conceituar a palavra na sua acepção correta, mas abusam dela para seus fins escusos contrários aos seus próprios fins. Os abusadores podem até não saber exatamente o que é democracia (mas em geral, sim, têm conhecimento para tanto), mas sabem muito bem o que é uma ditadura e como se portam os ditadores – não raro, são eles próprios tiranos. Um bom exemplo é a República Democrática e Popular da Coreia, nem popular nem democrática, ditadura comunista mais fechada do mundo liderada pela mesma família no poder desde 1948.

Que cada um fique no seu quadrado. E os abusadores da democracia, enquadrados.

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No Brasil, marcado ao longo de sua história por ter vivido mais períodos autocráticos do que de democracia plena, mesmo considerado apenas o período desde a Proclamação da República, em 1889, também parece se aplicar o conceito de "democracia relativa”, termo usado pelo atual mandatário Lula da Silva quando perguntado sobre o regime atualmente vigente na Venezuela.

As restrições de liberdades, abusos de autoridades e defesas abertas de instrumentos de exceção para a "defesa da democracia” feita por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por deputados e senadores governistas, pelo Poder Executivo, e defendidas por setores consideráveis da imprensa, academia e opinião pública brasileira, revelam quanto a palavra democracia vem sofrendo abuso no Brasil. Não só a palavra, aliás: a própria democracia brasileira está sob constante ataque de quem diz defendê-la.

Se o establishment decidir que a defesa é "antidemocrática", ela o é e passa a ser punida conforme a vontade do julgador.

Quando ouço que medidas abusivas e inconstitucionais precisavam ser tomadas em nome da "sobrevivência do sistema democrático” durante o governo Bolsonaro, durante o processo eleitoral ou mesmo agora com a volta ao poder de um condenado em várias instâncias da Justiça brasileira a nove anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, pergunto-me: a que “sistema democrático” estão os abusadores a se referir?

Seria esse "sistema democrático brasileiro" aquele em que a impunidade dos poderosos prevalece sobre o combate à corrupção? Em que a captura do orçamento para interesses eleitorais, pessoais e sindicais sobrepõe-se ao interesse coletivo? Em que indicações políticas do Centrão no Poder Executivo, para Cortes Judiciais e agências reguladoras são a regra para a perpetuação do famigerado patrimonialismo e clientelismo tão brasileiros? E o financiamento de imprensa com recursos públicos em vez da manutenção da mídia livre de interesses políticos por meio do apoio de assinantes e anunciantes?

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Mais: requer a nossa “democracia" brasileira o aprofundamento da injustiça por meio dos conflitos de interesses ao permitir que magistrados julguem casos em que a defesa é feita por escritórios de advocacia comandados por familiares de ministros das cortes superiores? E a iniciativa privada, na nossa “democracia” precisa ser induzida por campeões nacionais escolhidos a dedo pelo Estado para recebimento de créditos subsidiados e incentivos fiscais enquanto a burocracia escorchante e altos impostos matam na casca o empreendedorismo do mais pobre? Nosso "sistema democrático" tão ameaçado requer que sindicatos sejam mantidos pela força da lei com imposto sindical e movimentos criminosos como o MST merecem nosso aplauso, enquanto escravizam os mais pobres às suas vontades e privilégios?

Pois, então: sob o mantra de "defesa do sistema democrático brasileiro", abusadores da democracia perseguem quem tem sido vocal na manifestação contra o status quo, contra "este" sistema que, em larga medida, atenta contra a própria democracia e contra o Estado de Direito. Censuram inconstitucionalmente, bloqueiam contas bancárias ilegalmente e perseguem politicamente os opositores da política como ela é feita no país. Não importa que as defesas sejam feitas dentro dos limites legais e constitucionais, no uso do direito da liberdade de expressão do cidadão ou mesmo da imunidade parlamentar do congressista. Se o establishment decidir que a defesa é "antidemocrática", ela o é e passa a ser punida conforme a vontade do julgador. É o governo de homens, não o de leis.

Para reverter esta situação constrangedora, é o Congresso que deve colocar um freio nos abusadores. A Constituição reserva mais particularmente ao Senado da República, por exemplo, a abertura de processos de impeachment de ministros do STF que cometam crimes de responsabilidade. E confere ao Parlamento o dever de zelar por suas prerrogativas constitucionais e a efetiva definição do que é democracia por meio da sua função precípua de legislar conforme a verdadeira vontade popular.

Felizmente a reação parece ter começado. A decisão da oposição e das mais importantes frentes parlamentares de obstruir todas as votações na Câmara e no Senado nesta semana é legítimo e necessário grito pela volta da normalidade institucional. Que cada um fique no seu quadrado. E os abusadores da democracia, enquadrados.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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