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O primeiro filme brasileiro na história foi agraciado com um Oscar: o prêmio mais tradicional e importante da cinematografia mundial foi entregue a Ainda Estou Aqui na categoria melhor filme internacional. Apesar da euforia de parte da população brasileira, até mesmo pelo ineditismo do prêmio, confesso que não comemorei a vitória. Preferi o silêncio e, talvez, esta seja minha única manifestação pública a respeito da produção de Walter Salles.
Não posso, para início de conversa, avaliar e, muito menos, avalizar a qualidade técnica e artística da produção por um motivo simples: ainda não tive oportunidade de assistir à película. A hipocrisia de elogiar sem assistir não combina comigo – ainda que o fato de que a Academia de Hollywood tê-lo aclamado e premiado com um Oscar, bem como pelas demais premiações recebidas anteriormente por Ainda Estou Aqui, indicam que o filme seja de fato muito bem feito.
O partidarismo de produtores, elenco e militantes de esquerda, e a falta de empatia com os brasileiros de direita que são hoje vítimas de abusos aos seus direitos, demonstram, com pesar, que ainda temos muito a evoluir na defesa de direitos humanos para todos os brasileiros, sem distinção de qualquer natureza
No entanto, aproveitando o tema da hipocrisia, que não me cabe, foi ela quem mais me fez afastar da discussão envolvendo o filme. O enredo é notório, histórico: trata-se de um perseguido pela ditadura militar que é arrancado ilegalmente de sua casa e desaparece. Não importa o que ele tenha feito ou deixado de fazer anteriormente: o Estado não pode agir de forma ilegal e desumana com ninguém. Ponto. Nem nos anos 1960, nem nos anos 1970, nem nos anos 2020. Porém, infelizmente, para os produtores do filme e seu elenco principal, além dos militantes da esquerda, a defesa dos direitos humanos é seletiva.
Um amigo perguntou-me quantos ainda estavam presos em virtude dos atos de 8 de janeiro de 2023. Respondi que só o Supremo Tribunal Federal (STF) sabe ao certo, pois os processos são sigilosos, mas em presídios a estimativa é que sejam cerca de 200 presos. Com tornozeleira eletrônica em casa e com restrições de liberdades (não podem sair de casa à noite e nem aos fins de semana; ausentar-se da comarca, só com autorização judicial de Alexandre de Moraes), são hoje mais de mil. Meu amigo se assustou. Muito. Desconhecia por completo essa informação.
Pois é. Todos estes mais de mil e duzentos brasileiros ainda estão presos. No mínimo quatro deles já morreram nesse meio tempo – um deles dentro da cadeia na Papuda, Cleriston Pereira da Cunha. Seus casos não foram individualizados como manda a lei (alguns sequer estavam na Praça dos Três Poderes no dia); suas prisões foram quase todas, senão todas, ilegais; até agora não há denúncia formalizada; e seus advogados não têm acesso aos autos nem a defesa sequer da OAB em seu favor.
Falar sobre um regime de exceção e denunciar seus abusos décadas após o seu fim, em que pese ser importante, é bastante fácil. Denunciar violações aos direitos humanos em pleno curso e se posicionar contra o regime vigente que as comete, demanda uma coragem e uma fibra moral muito diferentes. Walter Salles e seu elenco, infelizmente, em todas as entrevistas que concedem, não apenas preferem ignorar os brasileiros que hoje sofrem com a perseguição política, como ainda decidiram por dar apoio aos abusadores.
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Em entrevista recente, Salles disse que seu filme seria “impossível" durante o governo de Jair Bolsonaro (por que, exatamente, não revelou), e Fernanda Torres disse em entrevista que o governo de Lula “se importa com o país”. Enquanto isso, milhares de brasileiros clamam por atenção da grande mídia, da classe artística, das autoridades em geral, para que percebam o sofrimento por que passam sob o regime do consórcio Lula-STF.
Consciente da situação real do Brasil, portanto, é para mim impossível celebrar uma vitória que serve ao propósito de denunciar violações aos direitos humanos de um lado do espectro político, mas cujos produtores e elenco não apenas esquecem de denunciar os abusos presentes do outro lado como também o apoiam. Técnica e artisticamente, Ainda Estou Aqui pode ser ótimo e merecedor do Oscar, mas a mensagem política e social mais ampla difundida é a de que, como diria Orwell, “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.
O Brasil, em um momento de grande divisão política, merecia celebrar unido o primeiro Oscar de um filme seu. Infelizmente, porém, o aprofundamento dessa divisão fez parte do roteiro da vitória. O partidarismo de produtores, elenco e militantes de esquerda, e a falta de empatia com os brasileiros de direita que são hoje vítimas de abusos aos seus direitos, demonstram, com pesar, que ainda temos muito a evoluir na defesa de direitos humanos para todos os brasileiros, sem distinção de qualquer natureza.




