O ministro do STF Flávio Dino.| Foto: Antonio Augusto/SCO/STF.
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Há mais de três séculos, em 1689, a Bill of Rights foi declarada na Inglaterra, tornando-se um dos mais fundamentais documentos da história democrática mundial. O povo declarava ali a sua irresignação com os excessos da monarquia e deixava registrado, de uma vez por todas, que cabia ao parlamento a representação cidadã. E como teriam tais representantes, dali para a frente e em um ambiente político ainda muito conflituoso, condição de expressar a vontade dos seus representados sem que fossem perseguidos pelo monarca ou por quem quer que fosse? O artigo 9 da Declaração vaticinava: “A liberdade de expressão e os debates ou os procedimentos no Parlamento não poderão ser impedidos ou questionados em qualquer corte ou lugar fora do Parlamento”. Nascia, assim, a imunidade parlamentar.

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Quase um século e meio depois, em 1824, Dom Pedro I outorga uma Constituição ao Brasil. O artigo 26 do texto estabelecia: “Os Membros de cada uma das Câmaras são invioláveis pelas opiniões, que proferirem no exercício de suas funções". Era a inauguração, em pleno tempo de império e por vontade expressa do soberano, a aplicação também em nossas terras de um direito que hoje é universal e inquestionável no mundo democrático.

A agressão que um ministro do Supremo Tribunal Federal decidiu promover agora não é apenas contra mim, mas muito mais do que isso: é contra a democracia brasileira e contra uma garantia fundamental civilizacional histórica

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A Constituinte Brasileira de 1988 mais uma vez confirmava o instituto da imunidade parlamentar em seu artigo 53: “Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos”. E, para deixar ainda mais claro do que se estava falando então, em 2001 o Congresso Nacional decidiu emendar a Constituição incluindo que a inviolabilidade dos representantes do povo é “civil e penal” como, ainda, refere-se a “quaisquer" de suas opiniões, palavras ou votos. Nada poderia ser mais expresso e compreensível. Exceto, a partir de 17 de setembro de 2024, para o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal.

Exatamente duzentos anos após o imperador Dom Pedro I, por livre e espontânea vontade, ter concedido pela primeira vez ao povo brasileiro a garantia de ser representado por deputados e senadores que podem se expressar livremente, Flávio Dino decidiu que a coisa não é bem assim. Um pronunciamento feito por mim poucas semanas antes na tribuna da Câmara dos Deputados, o mais característico, legítimo e explícito instrumento de trabalho de um parlamentar, passou a ser alvo da determinação de abertura de inquérito por Sua Excelência pois, para ela, “os fatos narrados, em tese em uma primeira análise, podem ultrapassar as fronteiras da imunidade parlamentar”.

Já estamos acostumados a ver, infelizmente, inúmeros casos de flexibilização judicial da imunidade parlamentar feitos pela Suprema Corte. O processo contra Jair Bolsonaro por crime contra a honra em virtude de uma entrevista à televisão em que critica uma colega quando era deputado federal; a prisão ilegal e inconstitucional de Daniel Silveira por manifestação contra ministros do STF em vídeo postado em redes sociais; a manifestação de Nikolas Ferreira em evento da ONU em que chama Lula de ladrão: esses são alguns exemplos de clara violação do mandamento constitucional.

Poder-se-ia aqui argumentar sobre a pertinência ou não da denúncia que fiz na tribuna – aliás, também publicada nesta Gazeta do Povo à época. No entanto, isso pouco importa. A imunidade parlamentar foi criada justamente para que, independentemente do cabimento ou não da manifestação, ela seja garantida integralmente. Pode um parlamento existir em um regime não democrático com tribuna livre – do que o próprio Brasil Império foi exemplo –, mas um parlamento que não garanta uma tribuna livre de qualquer tipo de constrangimento legal jamais combinará com uma democracia.

Não existe, pois, democracia com um parlamento amordaçado. O exercício da atividade parlamentar, palavra originada do francês “parler” cuja tradução é “falar”, não pode ser tolhido justamente no que lhe é mais fundamental. A agressão que um ministro do Supremo Tribunal Federal decidiu promover agora não é apenas contra mim, mas muito mais do que isso: é contra a democracia brasileira e contra uma garantia fundamental civilizacional histórica. Por outro lado, a solidariedade que tenho recebido e o número de matérias jornalísticas e artigos de opinião criticando a decisão de Flávio Dino dão conta de que a opinião pública brasileira não quer retroceder em direitos básicos. O Brasil não pode e não merece voltar à Idade Média.

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