Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

8 de janeiro

Os católicos que não querem justiça nem paz, só vingança

8 de janeiro
Entidades que se dizem defensoras da democracia silenciam diante de abusos cometidos na resposta ao 8 de janeiro. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.)

Ouça este conteúdo

Amanhã, 8 de janeiro, a invasão e o vandalismo na Praça dos Três Poderes completam dois anos, e devemos ver uma repetição do teatrinho de 2024, cheio de autoproclamados “defensores da democracia” – incluindo um que, depois de muito fingimento, vai reconhecer uma fraude eleitoral de um ditador, e outros que há quase seis anos não perdem uma chance de decretar censura e outros liberticídios similares. E, fazendo o corinho de “sem anistia”, deveremos ver também algumas entidades católicas.

Em meados de dezembro de 2024, a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP, que é um órgão vinculado à CNBB, embora não faça parte da estrutura institucional da conferência, como as comissões episcopais) e o Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB, “que se diz organismo de articulação, organização e representação dos cristãos leigos e leigas”, embora duvido que a maioria dos leigos brasileiros tenha lhe dado procuração para se dizer seu representante) publicaram uma “Nota Pública em defesa da democracia e pela efetiva responsabilização dos articuladores da tentativa de golpe contra o Estado Brasileiro de 2022”, assinada também por centenas de outras entidades. O texto foi publicado quase um mês depois da operação que prendeu militares e um policial federal, seguida poucos dias depois pelo indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e dezenas de outras pessoas no caso da tal “minuta do golpe”.

Os signatários “apelam para que a Procuradoria-Geral da República não se omita em seu papel de representante da cidadania, e apresente denúncia ao Supremo Tribunal Federal; para que este, como guardião da Constituição, responsabilize de forma legal, rigorosa e exemplarmente todos os perpetradores da violência contra o Estado Democrático de Direito”. Em outras circunstâncias, acho que até eu assinaria um pedido desses. O problema é que todo o contexto aponta para a conclusão de que não é bem “justiça e paz” que a CBJP, a CNLB e as outras entidades desejam.

Onde é que estavam a CBJP e a CNLB para defender centenas de brasileiros mantidos por meses em prisão preventiva desnecessária e abusiva na Papuda e na Colmeia?

Não me entendam mal: qualquer criminoso tem mais é de ser responsabilizado mesmo. Mas responsabilizado pelos crimes que realmente cometeu, ou que ao menos tentou e só não concretizou por circunstâncias alheias à sua vontade. Nosso Código Penal não pune cogitação, planejamento ou mesmo preparação se tais atos não forem crimes em si mesmos (já expliquei isso aqui). Nosso ordenamento jurídico exige individualização da conduta: cada um só é investigado, denunciado e condenado pelo que efetivamente fez. E, por mais que a nota da CBJP e da CNLB esteja se referindo ao tal plano para matar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, frases como “o processo político e de apuração do golpe pelas instituições de Estado (...) é lento, mas segue, até agora, os ritos democráticos e constitucionais: publicidade, transparência e legalidade” e “todos os envolvidos na trama: mentores, articuladores, financiadores, divulgadores e apoiadores devem ser responsabilizados” remetem aos pobres coitados anônimos, presos e condenados pelo 8 de janeiro.

Onde é que estavam a CBJP e a CNLB para defender centenas de brasileiros mantidos por meses em prisão preventiva desnecessária e abusiva na Papuda e na Colmeia? Onde estavam quando Clezão morreu na cadeia, apesar de laudos médicos apontando os riscos e apesar de o Ministério Público Federal ter dado parecer favorável à soltura? O que disseram sobre o caso da cabeleireira Débora, mantida presa até agora, afastada da família, por mais que haja jurisprudência defendendo que mães com crianças pequenas possam permanecer em prisão domiciliar? Alguma palavra sobre as centenas de condenações sem individualização da conduta, sem uma única evidência que os réus tivessem vandalizado algo, ou que tivessem de fato a intenção de dar um golpe por meio da invasão das sedes dos poderes? E sobre a pesca probatória no celular do padre José Eduardo, mencionado de forma sorrateiramente oblíqua na nota? Tudo isso fere a lei, a dignidade humana, o bom senso, mas não achei nota pública, indignação, nada, provavelmente porque, para a CBJP e a CNLB, “o processo (...) de apuração do golpe pelas instituições de Estado (...) é lento, mas segue, até agora, os ritos democráticos e constitucionais”, incluindo a “legalidade”. Ou seja, está tudo correndo como as duas entidades gostariam que corresse, já que os “apoiadores devem ser responsabilizados”.

“A Doutrina Social da Igreja considera a democracia como um elemento central”, disse o secretário-geral da CBJP, Daniel Seidel, ao site Crux. É verdade mesmo, mas as garantias democráticas têm sido sumariamente colocadas de lado em nome de uma suposta “defesa da democracia”, com a conivência (quando não o aplauso) de entidades como a CBJP e a CNLB. A coluna enviou mensagens a Seidel na tarde da última quinta-feira, por meio de seus perfis no Facebook e no Instagram, mas ele – que já foi candidato a deputado distrital pelo PT em 2014 (que padrãozinho estranho esse, não?) – não respondeu até a noite de segunda-feira, quando esse texto foi redigido. O espaço segue aberto.

Não haverá justiça, muito menos paz, enquanto a resposta das autoridades ao 8 de janeiro e a qualquer outra ação que porventura tenha buscado uma ruptura institucional seja marcada por violações contumazes das garantias democráticas. Defender que os autênticos golpistas (e não duvido que tenham existido) sejam punidos não é incompatível com a crítica ao abuso cometido pela PGR e pelo STF no tratamento a centenas de presos do 8 de janeiro – pelo contrário, é a única atitude coerente. O resto é hipocrisia de quem, no fundo, se rejubila ao ver o porrete comendo solto só porque os que estão apanhando pertencem ao “outro lado”.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.