Se o leitor desta coluna já fica com o pé atrás na hora de dar sua oferta para a Campanha da Fraternidade, uma vez por ano e no valor que escolher, imagine o drama vivido pelos católicos alemães que estão desnorteados com as loucuras do “Caminho Sinodal”. Uma reportagem do jornal norte-americano National Catholic Register publicada semana passada dá ideia do tamanho do dilema, já que na Alemanha o Estado praticamente incorporou aquele que é o quinto mandamento da Igreja (“prover as necessidades da Igreja, segundo os legítimos usos e costumes e as determinações”, na formulação do p. 2.043 do Catecismo) e o transformou em imposto.
O Kirchensteuer foi instituído em 1919 pela República de Weimar, num arranjo pelo qual o luteranismo deixou de ser a religião oficial da Alemanha e o financiamento passou a levar em conta a participação de cada confissão religiosa na população total do país. Explica o Register que o pertencimento à Igreja Católica (e a outras denominações) é formalizado tanto na papelada eclesial quanto na civil. Os católicos obrigatoriamente pagam 8% ou 9% (dependendo do estado em que vivem) do seu imposto de renda, e não têm escolha. No exemplo dado pelo jornal norte-americano, um católico que vive em Berlim e recebe a média salarial alemã teria de pagar quase 540 euros de Kirchensteuer por ano; o governo coleta o valor e o encaminha à Arquidiocese de Berlim.
Seria válida uma renúncia formal ao status de católico, por mais que no íntimo de cada um a fé se mantivesse em sua integridade, para não financiar heresia?
Aí começa o problema dos bons católicos alemães, porque seu dinheiro está ajudando a bancar o Caminho Sinodal, seus eventos, sua divulgação etc.; ainda que esses católicos vivam em uma diocese cujo bispo tenha a cabeça no lugar e se oponha aos desvarios sinodais, a coisa toda é bancada com recursos de toda a Alemanha. Mas a opção de não financiar o Caminho Sinodal simplesmente não existe. O opt-out é uma via de mão dupla e não há como separar as coisas. Uma coisa é alguém que realmente deixou de crer no que a Igreja ensina e por isso deixa de ser católico, consequentemente parando de pagar o imposto; outra é alguém que mantém a fé católica intacta, e justamente por isso não quer custear um processo que agride essa mesma fé. Para não pagar o Kirchensteuer, essa pessoa teria de dizer ao governo, para resumir, que não quer pertencer mais àquela religião. Seria o equivalente a uma apostasia (com a diferença de que, é claro, a pessoa não perdeu a fé). E quem não é mais membro formal da Igreja ficaria sem acesso aos sacramentos, ao menos àqueles que dependem de a pessoa estar com a documentação regularizada, como o matrimônio ou o batismo dos filhos – espero que padre nenhum na Alemanha peça “carteirinha de católico” na hora de dar a comunhão ou atender em confissão...
A reportagem do Register narra o drama de consciência de vários desses católicos: seria válida uma renúncia formal ao status de católico, por mais que no íntimo de cada um a fé se mantivesse em sua integridade, para não financiar heresia? Nenhum dos entrevistados deu o passo decisivo, mas sua dor é profunda; uma organização laica alemã oposta ao Caminho Sinodal e até o Vaticano vêm recebendo inúmeras consultas a esse respeito. Já para o episcopado, não há drama nenhum: o Kirchensteuer é bastante conveniente, já que garante o financiamento das dioceses, da conferência episcopal, do que for – em 2022 foram 6,8 bilhões de euros –, e não surpreende que os bispos alemães possam tranquilamente dar as mãos aos sindicalistas brasileiros que sonham com a volta do imposto sindical obrigatório: em 2012, eles publicaram um documento reafirmando a obrigatoriedade do pagamento para o acesso aos sacramentos.
Mas há vozes discordantes, e algumas bastante significativas. O Register conta que Bento XVI sempre foi um crítico do Kirchensteuer; durante seu pontificado, ele aprovou um texto da Pontifícia Comissão para Interpretação dos Textos Legislativos afirmando que “O ato jurídico-administrativo do abandono da Igreja de per si não pode constituir um ato formal de defecção no sentido designado pelo CIC [Código de Direito Canônico], visto que poderia subsistir a vontade de perseverar na comunhão da fé”. Ainda que o documento não mencione em nenhum momento a situação alemã, é aquela coisa: para bom entendedor, pingo é letra. Já como papa emérito, em entrevista a Peter Seewald, Bento XVI voltou a criticar o imposto e disse que “a excomunhão automática de quem não o paga não é defensável”.
Que o Kirchensteuer nos moldes atuais é uma aberração completa em termos de relação saudável entre Igreja e Estado me parece evidente, mas o que fazer enquanto ele não é abolido e substituído por um novo modelo, em que o católico (e o cristão pertencente a outras denominações) ajuda financeiramente a Igreja da forma que achar melhor, com ou sem a intermediação estatal? Faço uma analogia, ainda que imperfeita, com a esmola, que muita gente não dá por dizer que “o mendigo vai comprar bebida/droga/o que for, não comida”. Você não dá esmola porque tem certeza de que o dinheiro será “bem usado”; dá porque é a coisa certa a fazer. O que o pedinte fará com a esmola recebida é problema dele e, dependendo do uso, responderá a Deus por isso. Com o Kirchensteuer é a mesma coisa: pague-se, com dor no coração (e Deus haverá de reconhecer isso), e os bispos que prestem contas na eternidade pelo mau uso que fizerem de tanta grana.
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