O arcebispo Carlo Maria Viganò, que responde no Vaticano a um processo por cisma.| Foto: Reprodução/X/CarloMVigano
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“How do you solve a problem like Carlo Maria?”, canta-se agora nos corredores vaticanos. Carlo Maria Viganò, não um noviço, mas um arcebispo rebelde, foi chamado para uma audiência no Dicastério para a Doutrina da Fé no dia 28 de junho, em que responderia a uma acusação de cisma que poderia levar à sua excomunhão. Viganò simplesmente não apareceu, nem mandou defesa por escrito. Em vez disso, o ex-diplomata de 83 anos publicou uma longa carta que apareceu pela primeira vez no site do vaticanista Mario Tosatti e cujo conteúdo, bom, é indefensável.

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O arcebispo já tinha virado notícia quando duas cartas suas ao então papa Bento XVI, da época em que Viganò estava a cargo das finanças da Cidade do Vaticano, apareceram no escândalo do Vatileaks, mas ganhou notoriedade mundial depois da aposentadoria – seu último cargo havia sido o de núncio apostólico nos Estados Unidos, que deixou em 2016 ao completar 75 anos. Em 2018, Viganò pediu publicamente a renúncia do papa Francisco, que, segundo ele, teria revertido punições impostas por Bento XVI ao cardeal abusador Theodore McCarrick. A carta do ex-núncio foi publicada um mês depois de Francisco impor a McCarrick uma “vida de oração e penitência” em reclusão; em fevereiro de 2019, McCarrick perdeu o estado clerical. Dali em diante Viganò foi se afundando cada vez mais no tradicionalismo radical, e a carta do dia 28 mostra o quanto ele desceu, chegando ao sedevacantismo.

Afinal, se você pede a um papa para renunciar, implicitamente você está reconhecendo que ele exerce o cargo de forma legítima; mas agora nem isso Viganò afirma, muito pelo contrário. Em sua carta, intitulada “J’accuse” (quanta falta de originalidade...), o ex-núncio começa dizendo que não reconhece “a autoridade do tribunal que alega estar me julgando, nem do seu prefeito [cardeal Victor Fernández, prefeito do DDF], nem de quem o nomeou [Francisco, que o arcebispo jamais menciona pelo nome papal, chamando-o apenas de ‘Bergoglio’]”. Afirma haver “um abismo entre a Igreja Católica e aquilo que A substituiu, começando pelo Concílio Vaticano II”, uma conversa que qualquer um que tenha familiaridade com o discurso do tradicionalismo radical já conhece. Não podia faltar a referência a outro arcebispo rebelde, Marcel Lefebvre, citado por Viganò inclusive em frases como “Roma perdeu a fé! Roma está em apostasia!”

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Com suas palavras, Viganò não faz mais que confirmar a veracidade das acusações contra ele

(Aqui, uma breve digressão. Não sei quantos leitores já ouviram que, em La Salette, Nossa Senhora teria dito à vidente Mélanie que “Roma perderá a fé e se tornará sede do Anticristo”. Pois é: acontece que essa frase é parte de uma adição posterior feita pela vidente, ou seja, não fazia parte de nenhuma das duas versões do segredo aceitas pela Igreja. Na verdade, o Vaticano condenou essa versão tardia e proibiu sua divulgação, uma proibição que só caiu... depois do Concílio Vaticano II, quanta ironia!)

Segundo Viganò, “os erros e heresias a que Bergoglio aderiu antes, durante e depois de sua eleição, junto com a intenção que ele manifestou em sua aparente aceitação do pontificado, fazem sua elevação ao trono [de Pedro] nula e inválida”. Francisco, diz ele, estaria apenas fazendo o jogo da elite globalista e seria um usurpador do papado. Na verdade, sobra até para Bento XVI, que “inventou – junto com a “hermenêutica” de uma impossível “continuidade” entre duas entidades totalmente alheias [a doutrina católica e o ‘magistério pós-conciliar’] – o monstrum de um ‘papado colegial’ exercido simultaneamente pelo jesuíta [Francisco] e pelo emérito [Bento]”. Viganò não diz explicitamente se reconhece a validade do papado dos antecessores de Francisco; no máximo, há uma referência ao “Papado Romano – o Papado, que fique claro, de Pio IX, Leão XIII, Pio X, Pio XI e Pio XII” (faltou Bento XV aí, mas neste caso acho que foi esquecimento).

Enfim, não tem como defender isso aí; com suas palavras, Viganò não faz mais que confirmar a veracidade das acusações contra ele. Claro que ele não vê as coisas assim: na carta está claro que ele julga estar em perfeita comunhão com a Igreja – a diferença é que, na cabeça dele, o que passa hoje por Igreja Católica seria uma farsa, uma imitação; cismáticos seriam todos os que aderem a essa falsa Igreja, não ele. É o tipo de coisa que nem mesmo bispos que são muito críticos ao pontificado de Francisco compram. Athanasius Schneider, por exemplo, já disse achar que seria um equívoco excomungar Viganò, mas que o ex-núncio está errado, que sua linguagem é “desrespeitosa” e “não edifica nem ajuda ninguém”. Até a Sociedade de São Pio X, o grupo fundado por Lefebvre, quis distância de Viganò alegando que nem Lefebvre (excomungado em 1988 por ordenar bispos sem mandato papal) nem a SSPX “trilharam essa estrada perigosa” do sedevacantismo.

Escrevendo no National Catholic Register, o padre Raymond de Souza levanta uma hipótese interessante: que Viganò esteja conscientemente procurando a pior punição possível para formalizar sua separação daquilo que ele considera ser uma Igreja fake, mas que também teria o efeito de chamar a atenção para todos os outros casos que não terminaram assim, o que demonstraria uma incoerência de critérios por parte do Vaticano. É algo a se levar em consideração.

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Nenhum papa é perfeito em tudo o que faz, pode adotar políticas equivocadas, fazer nomeações ruins, e por aí vai. Sendo brutalmente honesto aqui, admito que Francisco tem uma coleção de atitudes que me deixam perplexo bem maior que a de seus predecessores. A perseguição inexplicável à missa tridentina (o recado de Traditiones custodes é “os bispos são guardiões da tradição, mas só podem guardá-la do jeito que eu quero que eles guardem”) enquanto as loucuras sinodais alemãs ganham só algumas reprimendas, punições mal explicadas contra bispos mais conservadores, o acordo desastroso com a China comunista, as escolhas de bispos de opiniões claramente heterodoxas para o Colégio Cardinalício e para posições-chave como relatorias de Sínodos, escândalos como o do padre Rupnik, tudo isso me entristece. Mas nada, absolutamente nada disso me faz duvidar da legitimidade de Francisco por um minuto que seja. A tudo isso se responde com menos rebelião e mais oração.

Tradicionalistas radicais têm uma paixão por Santo Atanásio, o bispo de Alexandria que combateu a heresia ariana no século 4.º, e por isso teve de encarar vários exílios e até uma excomunhão injusta decretada pelo papa Libério (um ato que, se realmente ocorreu, foi um caso claro de coação por parte do imperador e pressão de bispos arianos). Há os que se acham mini-Atanásios, e outros que não chegam a tanto, limitando a comparação a algumas pessoas em específico. É assim que Marcel Lefebvre virou o “Atanásio do século 20” e, caso acabe mesmo excomungado (o processo ainda não foi concluído), Viganò estaria em vias de se tornar o “Atanásio do século 21”. Mas é só ler a biografia do santo para ver que ele jamais tratou o Romano Pontífice como Lefebvre ou Viganò trataram e tratam. E uma coisa é uma excomunhão injusta proferida sob ameaça externa, outra coisa é uma excomunhão ocorrida após um ato cismático a respeito do qual não faltaram avisos e tentativas de negociação, bem como uma possível excomunhão decorrente de declarações explícitas de sedevacantismo. Não há comparação possível.

De que adianta ganhar todos os campeonatos e perder a sua alma?

José Neto à frente da seleção brasileira de basquete feminino durante o Pré-Olímpico de 2019.| Foto: Horacio Culaciatti/EFE

José Neto não é mais técnico da seleção brasileira de basquete feminino. Depois do desligamento do preparador físico Diego Falcão, culpado de ter a opinião “errada” sobre aborto, o treinador resolveu pedir demissão em solidariedade ao colega. No Instagram, José Neto mencionou “os princípios e valores da minha fé, à qual devo tudo que sou e tenho”.

Imediatamente, o jornalismo esportivo com um pé (ou dois, ou o corpo todo) na lacração começou a fazer a caveira do treinador no melhor estilo “vai tarde, não fará falta”. Além de aparecerem umas histórias de que ele teria curtido e depois descurtido sei lá o quê, agora estão lembrando tudo o que Neto não conseguiu à frente da seleção – especialmente a não classificação para os Jogos Olímpicos de Tóquio e Paris. Mesmo nesse último caso, em que a comissão técnica realmente deu bobeira e demorou para perceber um erro da mesa na marcação de pontos em um dos jogos, não vi ninguém pedindo a cabeça do treinador por causa disso à época.

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O jornalismo esportivo com um pé (ou dois, ou o corpo todo) na lacração começou a fazer a caveira de José Neto no melhor estilo “vai tarde, não fará falta”

Além do mais, apesar de hoje termos atletas na WNBA, ainda estamos meio em reconstrução. Mesmo tendo participado das edições anteriores de Jogos Olímpicos, as campanhas do Brasil em Pequim, Londres e Rio (antes de José Neto assumir a seleção) foram medíocres – em Londres, vencemos apenas o catadão da Grã-Bretanha, que só jogou por ser o país-sede; no Rio não ganhamos nenhum jogo na fase de grupos. Agora, o que Neto conquistou, como o bicampeonato dos Jogos Pan-Americanos em 2019 e 2023, quase 30 anos depois do último ouro (ainda na era de Paula e Hortência), bom, isso aí de repente perdeu toda a relevância.

De José Neto digo o que disse de Diego Falcão: torço sinceramente para que sua postura digna não acabe lhe custando oportunidades de emprego que ele teria caso manifestasse a “opinião correta” ou ficasse quietinho sem defender a vida do mais indefeso e inocente dos seres humanos. Mas, ainda que os dois acabem abrindo mão das medalhas do mundo do esporte, estou certo de que ficaram mais próximos daquele grande prêmio que todo cristão deve correr para ganhar, como diz São Paulo em uma de suas metáforas esportivas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]