A posição “ad orientem” na celebração da missa é mais associada ao rito tridentino, mas é permitida também no missal novo e não pode ser proibida pelo bispo.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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Já não sei como foi, só sei que foi assim. De clique em clique, provavelmente iniciado no perfil de algum dos apologistas gringos que eu sigo no Facebook, acabei chegando à edição de 18 de agosto do The Mirror, jornal da diocese de Springfield-Cape Girardeau, no estado americano do Missouri. Em sua coluna, chamada “Vinde e vede”, o bispo Edward Rice explica como está sendo a implementação de Traditionis custodes em sua diocese, diz que os fiéis que preferem a missa tridentina terão uma capela à disposição, e termina com uma solicitação: “Peço, neste momento, que todos os sacerdotes celebrem a liturgia voltados para o povo”, o que formalmente se chama de versus populum, em oposição a versus Deum ou ad orientem, quando o padre celebra voltado para o sacrário, no que é incorretamente chamado “de costas para o povo”.

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Traditionis custodes, com o pretexto de combater problemas reais (os excessos de comunidades tradicionalistas que atacam o Concílio Vaticano II e o missal de São Paulo VI), acabou deixando muitos outros tradicionalistas, que não tinham nada a ver com os radicais, sujeitos a restrições bem mais severas que as estabelecidas durante o pontificado de São João Paulo II, na Quattuor abhinc annos, de 1984. Não só isso; o motu proprio de Francisco abriu uma caixa de Pandora em que bispos tiveram a oportunidade de demonstrar todo o seu ódio não apenas pela missa tridentina, mas por qualquer coisa que lembrasse esse rito ou remetesse a uma maior solenidade ou zelo na liturgia. Um bispo em Porto Rico, por exemplo, imediatamente depois da publicação do motu proprio em 2021, proibiu em sua diocese não só a missa tridentina (que já nem era celebrada ali), mas também o uso de paramentos litúrgicos como a casula romana e o véu umeral, que são permitidos pelo missal promulgado por São Paulo VI! Não sei se o bispo Rice faz parte desse grupo – não parece que faça, até porque ele se esforçou em busca de um lugar para a celebração da missa tridentina, e o restante do jornal tem conteúdos bem bons, como uma coluna sobre milagres eucarísticos. E isso torna o pedido ainda mais curioso.

Uma pista possível está no título da coluna: “A Missa é um sinal de unidade e caridade”. Essa ideia é repetida logo após o pedido para que todos os padres celebrem voltados para os fiéis, com uma referência ao papa Francisco. Mas aí temos uma confusão enorme entre unidade e uniformidade. Se as duas coisas fossem indissociáveis, a rigor não deveríamos ter nem mesmo uma pluralidade de ritos na Igreja Católica, independentemente de seu local ou época de origem: deveria haver um rito único. E mais: para garantir a uniformidade dentro desse rito único, todos teriam de rezar exatamente da mesma forma, o que excluiria, se pensarmos no missal de Paulo VI, a multiplicidade de orações eucarísticas (e, quem sabe, até a celebração nos idiomas locais). Mas isso não faria o menor sentido, certo? Onde deve haver a unidade é na comunhão em torno do Santo Padre, das verdades de fé, da compreensão da missa como o sacrifício de Cristo, que se faz fisicamente presente no momento da consagração. De resto, a pluralidade traz riqueza, como São Paulo escreve em 1Coríntios 12 e como atestam nossos irmãos de ritos orientais ou que preferem a missa tridentina. E, se for para invocar o papa Francisco, também ele já celebrou ad orientem em várias ocasiões.

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O bispo não pode proibir o versus Deum na celebração segundo o missal novo; mas, mesmo que pudesse, não deveria fazê-lo. Há uma série de boas razões teológicas em defesa dessa orientação, que não tem nada de “dar as costas para o povo”

Falando em autoridade, é interessante que o bispo Rice também tenha apelado para sua autoridade episcopal para impor o versus populum. Em determinado momento, ele cita o parágrafo 22 da Sacrosanctum Concilium, segundo o qual “regular a sagrada Liturgia compete unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no bispo”. Ele não percebe que o texto retira sua legitimidade para vetar o ad orientem. Pois a regra é: quem faz as leis litúrgicas é o Vaticano; os bispos (e as conferências episcopais) só podem legislar sobre liturgia quando a Sé Apostólica lhes dá essa permissão de forma explícita. É o caso, por exemplo, da comunhão na mão ou de meninas coroinhas.

Mas não é o caso da orientação do sacerdote; não existe documento do Vaticano autorizando bispos a impor ou proibir nem versus Deum, nem versus populum. Tanto é assim que, para alguns liturgistas e apologistas, algumas rubricas do Missal Romano (o atual, não o tridentino) parecem pressupor que o padre esteja celebrando ad orientem, por exemplo quando usam termos como “voltado para o povo”, o que seria desnecessário se o padre já estivesse de frente para a assembleia o tempo todo. De qualquer forma, e para que não fique dúvida nenhuma, a antiga Congregação (hoje Dicastério) para o Culto Divino já interveio ao menos uma vez quando um bispo tentou proibir o ad orientem: foi em 2000, nos Estados Unidos. O bispo Rice, curiosamente, alega que “até o momento nenhum padre pediu permissão para celebrar de forma diferente”. Aí é que está: não pediu porque não precisa pedir; o padre é livre para escolher como celebra.

Acrescentemos, agora, outra dimensão à conversa; o bispo não pode proibir o versus Deum na celebração segundo o missal novo; mas, mesmo que pudesse, não deveria fazê-lo. Há uma série de boas razões teológicas em defesa dessa orientação, que não tem nada de “dar as costas para o povo” como seus detratores querem fazer parecer. Na verdade, o versus Deum funciona com uma lógica muito simples: quando o padre fala com Deus, está virado para Deus (o que é o caso na maioria das orações); quando fala com os fiéis, está virado para os fiéis (por exemplo, no “o Senhor esteja convosco”, ou ao dar a bênção). Aliás, é assim até na missa tridentina: o padre não fica o tempo todo voltado para o sacrário; ele se vira para a assembleia em várias ocasiões.

Deixemos alguém muito mais gabaritado que eu falar do assunto: o então cardeal Joseph Ratzinger, em seu Introdução ao Espírito da Liturgia. A citação é longa, mas valiosa; está no terceiro capítulo da parte 2, e o que segue é minha tradução da versão em inglês (mas sei que existe uma edição brasileira):

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“Na verdade, o que houve [com a mudança massiva para o versus populum após a reforma litúrgica de 1969] foi uma clericalização sem precedentes. Agora o padre – o ‘presidente da celebração’, como preferem chamá-lo agora – se torna o verdadeiro ponto de referência para toda a liturgia. Tudo depende dele. Temos de vê-lo, responder a ele, nos envolver no que ele está fazendo (...) Deus está cada vez menos no cenário. Cada vez mais o que importa é o que é feito pelos seres humanos que se reúnem e não gostam de se submeter a ‘padrões pré-determinados’. Deixar o padre virado para a assembleia transformou a comunidade num círculo fechado em si mesmo. (...) A direção comum para o oriente não significava ‘celebrar virado para a parede’, nem que o padre ‘dava as costas ao povo’: o padre nem era assim tão importante. Afinal, assim como a congregação na sinagoga se unia na direção de Jerusalém, também na liturgia cristã a congregação se une ‘na direção do Senhor’. Como diz um dos pais da Constituição sobre a Liturgia do Vaticano II, J. A. Jungmann, é mais uma questão de padre e povo olharem para a mesma direção, sabendo que estão juntos em uma procissão rumo ao Senhor.”

O que Ratzinger diz bate perfeitamente com um relato que li muitos anos atrás (e infelizmente não consigo achar agora), de um padre “liberal”, “progressista” ou coisa do tipo, que celebrou pela primeira vez uma missa tridentina a pedido dos fiéis de sua paróquia – guiado inicialmente mais por um espírito de tolerância e “respeito à diversidade” que qualquer outra coisa. Ele se preparou, estudou, e descreveu sua primeira missa versus Deum como uma experiência de humildade: de repente, ele não era o centro das atenções; Deus era. Ele percebeu que o versus populum jogava uma carga adicional sobre o padre, que agora tinha de ser também simpático, carismático, teatral, um entertainer.

O papa Francisco celebra missa no Peru, em 2018, usando o “arranjo beneditino”, com a cruz no centro do altar. (Foto: Ernesto Arias/EFE)

Vejam que Ratzinger deixa evidente sua preferência pelo versus Deum, mas não rejeita o versus populum nem defende sua abolição ou algo do tipo. E, quando foi papa, não adotou nenhuma medida nessa direção, celebrando versus populum em praticamente todas as missas públicas. Agora, que não faria mal nenhum um padre fazer a experiência do versus Deum – nem precisa ser na missa toda; pode ser, por exemplo, apenas na Oração Eucarística –, não faria mesmo, desde que muito bem explicadinho antes aos fiéis, para espantar todos os mal-entendidos, já que a ideia do “de costas para o povo” ainda é bastante comum. Mas, assim como nenhum padre pode ser obrigado a celebrar versus populum, também não é obrigado a celebrar versus Deum. No entanto, para quem não quer ou não pode, Ratzinger ainda tem uma sugestão, que ele mesmo colocou em prática durante seu pontificado:

“Devíamos rearranjar tudo outra vez? Nada prejudica mais a liturgia que um ativismo constante, mesmo que seja em nome de uma autêntica renovação. (...) Onde a direção comum ao oriente não é possível, a cruz pode servir como um ‘oriente’ interior da fé. Ela devia estar no meio do altar e ser o ponto focal comum para o celebrante e para a comunidade orante. (...) Mover a cruz do altar para um canto, para permitir uma visão desimpedida do padre, é um dos fenômenos mais absurdos das últimas décadas. A cruz atrapalha a missa? O padre é mais importante que o Senhor? Esse erro deveria ser corrigido o quanto antes, e pode ser feito sem nenhum tipo de reconstrução. O Senhor é o ponto de referência. Ele é o sol nascente da história.”

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Então, não há nem base legal nem boas razões litúrgico-teológicas para proibir o versus Deum na celebração da missa de São Paulo VI. Pelo contrário: ele é uma boa expressão da real natureza da ação litúrgica e pode ser fomentado, embora isso exija um bom reforço na formação litúrgica da comunidade. No mínimo, que se adote no versus populum o “arranjo beneditino” (com a cruz no meio do altar – e uma cruz grande, por favor, não uma minicruz). Não podemos fazer de padre e fiéis um círculo fechado; de nada adianta não “dar as costas para o povo” se você está dando as costas ao bom senso – e até mesmo para Deus.

“A direção comum para o oriente não significava ‘celebrar virado para a parede’, nem que o padre ‘dava as costas ao povo’ (...) assim como a congregação na sinagoga se unia na direção de Jerusalém, também na liturgia cristã a congregação se une ‘na direção do Senhor’.”

Cardeal Joseph Ratzinger, em “Introdução ao Espírito da Liturgia” (2000).

O bom exemplo de lá...

Um bispo norte-americano que vale a pena acompanhar é Joseph Strickland, da diocese de Tyler, no Texas. Ele tem se pronunciado de maneira bastante firme em defesa da vida e da família, e lançou uma ótima carta pastoral sobre o Sínodo da Sinodalidade que vem aí. “Sinto que é importante reiterar as seguintes verdades básicas que tem sido defendidas pela Igreja desde seu início, e enfatizar que a Igreja existe não para redefinir as verdades de fé, mas para proteger o Depósito da Fé da forma como nos foi entregue por Nosso Senhor, por meio dos apóstolos, dos santos e dos mártires”, afirma ele antes de listar sete dessas verdades. No Sínodo, diz Strickland, haverá quem queira discutir e até redefinir essas verdades, mas precisamos nos agarrar aos fundamentos da fé sem medo de sermos ridicularizados, mesmo por quem esteja dentro da Igreja. “Tenham certeza de que Cristo não abandonará sua Esposa”, o bispo conclui.

... e o bom exemplo daqui

Itumbiara, em Goiás, ganhou um belo presente do papa Francisco: um excelente bispo, dom José Aparecido Gonçalves de Almeida, até agora bispo auxiliar de Brasília. Na catedral da capital federal, durante sua missa de despedida, pudemos ver esta cena:

Foto: Reprodução/YouTube/Canção Nova
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É o cardeal-arcebispo de Brasília, dom Paulo Cezar Costa, quem dá a comunhão na boca a um fiel ajoelhado – e não foi o único, como poderá comprovar quem assistir ao vídeo completo da missa (o momento da comunhão começa em 1h21min30s). A seu lado, dom José Aparecido dá a comunhão na mão a um fiel em pé. É exatamente esta a liberdade da qual falei na coluna duas semanas atrás, e que cabe aos bispos defender.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]