O teólogo Frei Betto, em foto de 2020, durante evento em Havana (Cuba).| Foto: Ernesto Mastrascusa/EFE
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Enquanto eu estava curtindo as férias, Frei Betto publicou um texto lamurioso que deu o que falar. Intitulado “Cabelos brancos”, ele basicamente reclama que a base vem fraca, para inverter o famoso clichê do futebol. A esquerda – que ele chama de “forças progressistas”, embora o que elas pretendam esteja muito longe de ser progresso – não estaria se renovando, a julgar pelo público de um evento de fé e política do qual Betto participou recentemente. “Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder”, reclama ele, acrescentando que “não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista”.

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Não é uma análise puramente religiosa; Betto está falando da esquerda como um todo, não apenas de sua vertente “religiosa” que é a Teologia da Libertação, tanto que começa citando as próximas eleições municipais. Mas, do meio em diante, sobra também para os cristãos (não só os católicos) conservadores ou tradicionais. O autor critica o “fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios” (essa parte de “eleger bandidos notórios”, bom, deixo para vocês analisarem), e que “apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado”. Por fim, ele ainda ataca a “neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam ‘a moral e os bons costumes’ dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos”. Como o relógio parado que acerta a hora duas vezes por dia, concedo a Betto razão sobre quem elogia torturador e miliciano, embora ele seja bem hipócrita quando silencia sobre os carniceiros de estimação da esquerda (e do próprio Betto, fã do regime cubano); agora, botar no rolo a defesa dos mais indefesos e inocentes dos seres humanos mostra bem o nível da argumentação.

Essas pessoas, que viveram tantos momentos significativos da história do mundo, do Brasil e da Igreja, teriam muita coisa a nos ensinar... caso não estivessem completamente dominadas por uma visão político-ideológica-religiosa ultrapassada

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Na “libertosfera” o artigo de Frei Betto provocou uma enxurrada de respostas, umas concordando, outras tentando aprofundar a questão, outras ainda apontando um ou outro problema na tese de fundo. Alguns lembraram que as ideias que moveram a geração de Frei Betto seguem vivas, sim, entre os jovens. Com esses eu infelizmente tenho de concordar; basta ver essa mobilização recente de acampamentos de estudantes universitários em defesa de terroristas palestinos, ou dar qualquer olhada breve nas páginas de algumas (felizmente, não todas) Pastorais da Juventude nas mídias sociais. Antes o marxismo e sua infiltração na Igreja estivessem mesmo em vias de extinção por falta de renovação, mas não me parece ser o caso.

É claro que o problema não está nos cabelos brancos. O papa Francisco e seus antecessores não se cansam de lembrar a riqueza que os idosos têm para transmitir, construída por meio de anos de vida, de aprendizado e de experiência. Poder ouvir o que os mais velhos têm a nos contar e ensinar é um privilégio que não podemos desprezar. Em uma de suas catequeses, assim falou o papa:

“Na tradição da Igreja existe uma bagagem de sapiência que sempre sustentou uma cultura de proximidade aos anciãos, uma disposição ao acompanhamento carinhoso e solidário na parte final da vida. Esta tradição está arraigada na Sagrada Escritura, como testemunham por exemplo estas expressões contidas no Livro do Sirácide: ‘Não desprezes os ensinamentos dos anciãos, dado que eles os aprenderam com os seus pais. Estudarás com eles o conhecimento e a arte de responder de modo oportuno’ (Eclo 8, 11-12).”

O verdadeiro problema aparece quando os cabelos brancos cobrem cabeças ocas, e ainda por cima se empenham em esvaziar outras cabeças cobertas por cabelos que ainda estão longe de embranquecer. Cabeças incapazes de perceber a verdade, que seguem agarradas a ideologias jurássicas e que demonizam irmãos de fé porque eles não compartilham das mesmas posições políticas e até mesmo porque querem levar a sério o que o cristianismo lhes pede, com todas as suas consequências morais e sociais. Cabeças que tratam como inimigos, chamando de “fundamentalistas”, “neofascistas” e o que mais houver no pacote padrão de insultos da esquerda religiosa, aqueles que lutam com todas as forças contra o aborto, que se mobilizam em favor do pobre sem comprar a lorota da “luta de classes”, que sabem que, no fim das contas, todo sofrimento decorre mesmo do pecado.

Se há algo a lamentar, então, não é que os eventos de que Frei Betto participa estejam repletos de gente de cabelos brancos; essas pessoas, que viveram tantos momentos significativos da história do mundo, do Brasil e da Igreja, teriam muita coisa a nos ensinar... caso não estivessem completamente dominadas por uma visão político-ideológica-religiosa ultrapassada, quando não claramente oposta à fé. Vamos valorizar os inúmeros donos de cabelos brancos com os quais temos a aprender; quanto aos outros, rezemos para que Deus preencha as suas cabeças com a verdade – pois tempo para isso sempre há.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]