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O cardeal Blaise Cupich, arcebispo de Chicago, tem um critério muito peculiar para determinar quem pode se aproximar da Eucaristia em sua diocese. Políticos católicos que defendam a legalização do aborto nos Estados Unidos? Esses podem ficar tranquilos, a Igreja é para todos, venham! Católicos que desejam receber a comunhão de joelhos? Melhor pensarem duas vezes se não quiserem levar um sabão do padre. Não foram essas as palavras, mas foi essa a mensagem do arcebispo em uma coluna publicada no site da arquidiocese na semana passada.
O cardeal Cupich usa o Super Trunfo do Concílio Vaticano II para justificar suas próprias preferências litúrgicas, como já disse um amigo meu que citei aqui em outra ocasião, a respeito da fala infeliz do arcebispo de Cascavel sobre quem prefere receber a comunhão na boca. Diz o cardeal que o Vaticano II “pediu uma participação plena, ativa e frutuosa de todos os batizados na celebração da Eucaristia”, que “nosso ritual para receber a Sagrada Comunhão tem especial significado a esse respeito”, e que “a norma estabelecida pela Santa Sé para a Igreja universal e aprovada pela Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos estabelece que os fiéis se desloquem em procissão como expressão de sua caminhada adiante como Corpo de Cristo, e que recebam a comunhão em pé”.
Cupich quer vender como norma da Igreja aquilo que é apenas uma opinião pessoal dele. Em nenhum lugar da Instrução Geral do Missal Romano está escrito que a “norma estabelecida” para se receber a Eucaristia é em pé. Na verdade, o que a Igreja sempre tem repetido é que o fiel tem a liberdade de escolher. Está na Redemptionis Sacramentum (n. 20); está na catequese do papa Francisco de 21 de março de 2018; está inclusive nas orientações da conferência episcopal norte-americana, que de fato afirmam que a norma aprovada pelos bispos de lá é comungar em pé, mas também dão ao fiel a liberdade de receber a comunhão de joelhos se assim o desejar. Tem mais, até: os bispos norte-americanos citam Redemptionis Sacramentum ao dizer que ninguém pode ter negada a comunhão simplesmente por querer recebê-la em pé ou ajoelhado.
Ninguém “atrapalha” a comunhão dos outros ao ajoelhar-se no momento de receber a hóstia. Quem atrapalha e faz a fila parar é o padre ou bispo que resolve invocar com isso
Mas Cupich faz questão de não citar nenhuma dessas ressalvas. Isso porque, para ele, ajoelhar-se para receber o Corpo de Cristo é tumultuar a fila da comunhão. Faço questão de traduzir o parágrafo inteiro porque ele é de uma surrealidade absurda:
“Não se pode fazer nada para impedir nenhuma dessas procissões, especialmente a que tem lugar durante o ritual da Sagrada Comunhão. Atrapalhar este momento apenas diminui essa poderosa expressão simbólica, pela qual os fiéis, juntos em procissão, manifestam sua fé no chamado para se tornar o mesmo Corpo de Cristo que recebem. Certamente pode-se e deve-se demonstrar reverência inclinando-se antes de receber a comunhão, mas ninguém deveria adotar gestos que chamam a atenção para si mesmo e atrapalham o fluxo da procissão. Isso seria contrário à norma e à tradição da Igreja, que todos os fiéis devem respeitar e obedecer.”
Cupich fala como se o fiel se deslocasse de joelhos desde o seu banco até a hora de comungar, como um caminhão pesado e lento que se mantém na faixa da esquerda em uma rodovia por dezenas de quilômetros. Ninguém precisa me contar, porque eu vejo todo domingo que ninguém “atrapalha” a comunhão dos outros ao ajoelhar-se no momento de receber a hóstia. Quem atrapalha e faz a fila parar é o padre ou bispo que resolve invocar com o coitado do católico que só está fazendo o que a Igreja diz que ele pode fazer. E, se já vimos que a “norma” na verdade garante a liberdade do fiel, ainda mais fora da casinha é invocar a “tradição da Igreja”, já que por séculos os católicos só receberam a comunhão de joelhos (e na boca); comungar em pé é fenômeno bastante recente para uma Igreja com 2 mil anos de história.
Além disso, é muito triste ver com que facilidade pastores como Cupich pressupõem que a única explicação possível para uma pessoa se ajoelhar na hora de receber a comunhão é o exibicionismo, a vontade de chamar a atenção para si. Isso é preconceito no pior sentido da palavra, pois associa automaticamente uma disposição má, a vaidade, a um ato de reverência a Jesus presente na hóstia consagrada. Não posso dizer com 100% de certeza que ninguém se ajoelhe por exibicionismo ou vontade de mostrar santidade; talvez existam pessoas assim, mas, novamente partindo de minha experiência pessoal, creio que sejam casos raríssimos. E em hipótese alguma isso justificaria a estigmatização de uma multidão de católicos que simplesmente creem que a comunhão de joelhos é a sua forma de demonstrar respeito pela Eucaristia.
Repetirei aqui quantas vezes for preciso as palavras duras, mas necessárias, do então cardeal Joseph Ratzinger em seu indispensável Introdução ao Espírito da Liturgia: “uma fé e uma liturgia que já não estão acostumadas ao ajoelhar-se estão profundamente doentes. (...) onde o ato de se ajoelhar se perdeu, precisa ser redescoberto, de forma que, em nossa oração, permaneçamos em comunhão com os apóstolos e mártires, com todo o cosmos, em união com o próprio Jesus Cristo”. Outro dia, citei aqui uma pesquisa que encontrou uma correlação entre maior devoção eucarística e sinais externos como a sineta da consagração e atos como o de se ajoelhar. Se Cupich tem alguma preocupação com o declínio da fé na Presença Real de Jesus na Eucaristia, melhor rever suas prioridades.
Vaticanistas criam novo site para cardeais se conhecerem melhor
Dois vaticanistas, Edward Pentin e Diane Montagna (a única que tem o dom de fazer as perguntas certeiras nas coletivas do Vaticano sem medo de perder a credencial), lançaram dias atrás um site chamado The College of Cardinals Report, com perfis de todos os cardeais e, talvez o mais importante, uma listinha do que eles pensam sobre temas sensíveis da Igreja, como a comunhão para divorciados em nova união civil, restrições à missa tridentina, e ordenação de mulheres – essa seção está menor, com apenas 40 cardeais, mas o objetivo é ampliá-la até onde for possível.
Os críticos se apressaram a chamar Pentin e Montagna de agourentos, porque eles já estariam pensando no próximo conclave ao fazer esse tipo de levantamento. Mas outro vaticanista, Andrea Gagliarducci, defendeu a iniciativa dizendo, em primeiro lugar, que esse tipo de conversa acontece com todo papa – e Francisco é quase um nonagenário, fazendo 88 anos hoje mesmo; qualquer bom católico reza para que Deus lhe dê muitos mais anos de vida, mas seria absurdo ignorar que um conclave possa estar no cenário ao menos no médio prazo. Em segundo lugar, a forma como Francisco tem criado cardeais dificulta que eles se encontrem e conversem uns com os outros, uma deficiência que não há como sanar durante a eleição papal e nos poucos dias que a antecedem; não há nada reprovável em dar-lhes ferramentas para que se conheçam melhor – o mesmo objetivo da revista Cardinalis, também tocada por um grupo de vaticanistas.
Gagliarducci aponta uma certa dose de wishful thinking no trabalho de Pentin e Montagna, como considerar papabili alguns cardeais cujas chances em um próximo conclave são bem pequenas – o mesmo problema que eu já havia notado quando resenhei o ótimo The Next Pope, de Pentin. São os momentos em que as preferências acabam triunfando sobre a análise fria. Eu também gostaria que certos cardeais fossem candidatos sérios – talvez até sejam, porque a “matemática do conclave” ficou bem mais complexa graças às nomeações feitas por Francisco, mas se for assim eu sinto falta de uma explicação melhor que justifique o status de papabile concedido a alguns cardeais.
Um santo Natal a todos os leitores!
Semana que vem não teremos coluna, então aproveito essa oportunidade para desejar um santo Natal aos leitores. No dia 26, a Jovem Pan News veiculará a minha participação no programa Entrevista com D’Avila; o apresentador Luiz Felipe d’Avila e eu conversamos sobre o legado do cristianismo para a sociedade, e falei um pouco sobre o Deus que se faz carne e vem ao mundo como uma criança frágil. Pena que ali na hora acabei não me lembrando da minha canção de Natal preferida: Tu scendi dalle stelle, composta por Santo Afonso Maria de Ligório, muito popular na Itália, mas bem pouco conhecida no Brasil. Ela fala do Deus que treme de frio na gruta, do Criador do mundo a quem faltam o pão e o fogo, tudo por amor a nós. Se você assistir à transmissão da Missa do Galo no Vaticano (ou se tiver a felicidade de estar lá pessoalmente), certamente irá ouvi-la ao fim da celebração. Deixo abaixo três versões dela: com o coro da Basílica de São Pedro, com Andrea Bocelli e com Luciano Pavarotti.