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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Terrorismo

Não existe argumento aceitável para defender o Hamas (versão católica)

Papa Pio X disse ao sionista Theodor Herzl, em 1904, que a Igreja não poderia apoiar o estabelecimento de um Estado judeu na Palestina. (Foto: Ernest Walter Histed/National Portrait Gallery/Wikimedia Commons/Domínio público)

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Tomei emprestado o título da ótima coluna do meu amigo Paulo Polzonoff Jr. (se você ainda não leu, leia que é obrigatório) para fazer aqui uma espécie de “versão católica” do desabafo, porque infelizmente vi algumas coisas de doer o coração em ambientes católicos. E aí o leitor irá me perguntar, como perguntou ao Polzonoff: “Teve quem dissesse isso?” Então, como já disseram por aí, “ignorância é bênção”. Talvez porque eu passe pouquíssimo tempo no Twitter (o tempo de jogar lá os editoriais da Gazeta, minhas colunas, e sair correndo), ou por algum outro motivo, graças ao bom Deus não cheguei a ver católico usando argumento religioso com verniz de ortodoxia para defender o Hamas*. Mas aquela schadenfreudezinha, aquele “Israel faz isso e aquilo, o Hamas retaliou, não justifica mas explica”, ah, isso teve sim.

* Padre Julio Lancellotti não conta, aquilo lá é outro grau de defesa de terrorista que não tem nada a ver com o que vou tratar nesta coluna. Sigo achando que ele vai me preceder tranquilamente no Reino dos Céus pelos critérios de Mateus 25,31-46, mas que ele se esforça pra estragar o mérito que tem diante de Deus, ah, como se esforça...

Leia o Catecismo – é, o de Trento

Diz o Polzonoff, e eu não tenho nenhum motivo pra duvidar dele, que “neste Ano da Graça de 2023, vivi (vivemos) para testemunhar isso: gente dizendo que os judeus são deicidas, isto é, mataram Jesus – e por isso merecem tudo o que lhes acontece”. Como isso me cheira a católico tradicionalista radical, nem adianta eu mostrar o trecho da Nostra aetate sobre a acusação de deicídio (“Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à morte não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se perpetrou”) porque o tradicionalista radical descarta o Vaticano II como “lixo modernista”. Então, vamos a algo que esse católico supostamente respeita: o Catecismo Romano – aquele, de São Pio V, publicado em 1566. Quando se pergunta quem fez Cristo sofrer, a resposta é essa aqui:

“Sobe de ponto a sublimidade de Sua Paixão, não só porque Cristo sofreu pelos pecadores, mas porque os próprios pecadores foram também autores e instrumentos de todas as penas pelas quais teve de passar. Lembra-nos o Apóstolo esta circunstância, quando escreve aos Hebreus: ‘Considerai Àquele que dos pecadores sofreu tanta contradição contra Si mesmo. Assim não desanimareis em vossas fadigas’. Devem julgar-se responsáveis de tal culpa todos aqueles que continuam a reincidir muitas vezes em pecados. Já que nossos pecados arrastaram Cristo Nosso Senhor ao suplício da Cruz, todos os que chafurdam em vícios e pecados fazem de sua parte quanto podem, para de novo crucificar ‘em si mesmos o Filho de Deus, e cobri-l’0 de escárnios’. Tal crime assume em nós um caráter mais grave, do que no caso dos judeus; porquanto estes, no sentir do Apóstolo, ‘nunca teriam crucificado o Senhor da glória, se [como tal] O tivessem conhecido’. Nós, porém, que [de boca] afirmamos conhecê-l’0, nem por isso deixamos, por assim dizer, de levantar as mãos contra Ele, todas as vezes que o negamos em nossas obras.”

Graças ao bom Deus não cheguei a ver católico usando argumento religioso com verniz de ortodoxia para defender o Hamas. Mas aquela schadenfreudezinha, aquele “Israel faz isso e aquilo, o Hamas retaliou, não justifica mas explica”, ah, isso teve sim

E tem mais, caso o nosso amigo tradicionalista não esteja satisfeito:

“Homens de todas as raças e condições ‘conspiraram contra o Senhor e contra o Seu Ungido’. Eram gentios e judeus os que instigaram, promoveram, e executaram a Paixão de Cristo. Judas traiu-O, Pedro renegou-O, todos os outros Discípulos O abandonaram.”

Em resumo, somos mais deicidas que os judeus, porque estes mataram a Cristo ignorando que ele era o Filho de Deus, enquanto nós, bem cientes disso, seguimos crucificando-o todo dia com nossos pecados.

Ah, mas os judeus cospem em cristãos na rua...

Aí apareceu aquela história, sempre com aquela mensagem subliminar de “não justifica terrorismo, mas é por isso que não podemos apoiá-los”, de que judeus ortodoxos tratam com enorme hostilidade os cristãos que vivem na Terra Santa ou peregrinam a Jerusalém. Acontece? Sim, acontece. Recentemente um jornalista de um canal israelense de televisão se disfarçou com um hábito e acompanhou um franciscano pelas ruas de Jerusalém para registrar as reações; a dupla recebeu cusparadas até de uma criança e de um soldado.

Obviamente o nosso amigo cruzadinho virtual não viu, mas esse tipo de situação já recebeu críticas duríssimas de autoridades, incluindo o embaixador de Israel na Santa Sé:

O embaixador Raphael Schutz ainda retuitou um comunicado do rabino-chefe de Jerusalém condenando a hostilidade contra cristãos:

E eu seria capaz de apostar que, apesar disso tudo, ainda é muito melhor ser cristão em Israel que em um território controlado por terroristas islâmicos.

VEJA TAMBÉM:

Ah, mas Pio X disse a Theodor Herzl que os judeus não deviam ter um país

Os tradicionalistas também ressuscitaram um relato do fundador do sionismo, Theodor Herzl, sobre sua visita ao papa Pio X em 1904, para pedir apoio à causa de uma terra para onde os judeus pudessem emigrar e viver em paz. Isso é o que o papa teria dito a Herzl:

“Nós não podemos apoiar esse movimento [sionista]. Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém, mas não podemos de forma alguma apoiar isso. Mesmo que nem sempre fosse santa, a terra de Jerusalém foi santificada pela vida de Jesus Cristo. Como chefe da Igreja, não posso lhe dizer outra coisa. Os judeus não reconheceram Nosso Senhor, e é por isso que não podemos reconhecer o povo judeu. (...) Sei muito bem que é desagradável ver os turcos de posse de nossos lugares santos. Somos forçados a suportar. Mas apoiar os judeus para que possam obtê-los – os Lugares Santos – é algo que não podemos fazer.”

E aí aqueles que criticam quem eleva as entrevistas de Francisco nos voos das viagens papais ao status de magistério pontifício agora atribuem infalibilidade a umas frases ditas por São Pio X numa audiência. Enfim, a hipocrisia.

Ainda que neste caso houvesse um pano de fundo teológico, a oposição de Pio X (e de alguns de seus sucessores) ao estabelecimento de um Estado judeu é, sejamos francos aqui, um juízo político-diplomático, que poderia estar certo ou errado. Nem mesmo Pio XII – que, ao contrário do que diz a campanha de calúnia orquestrada contra ele, atuou diretamente para salvar centenas de milhares de judeus durante o Holocausto – foi um entusiasta da partilha da Palestina; mas, lendo a sequência de três encíclicas publicadas por ele em um intervalo de um ano e meio em 1948 e 1949 (Auspicia quaedam, In multiplicibus curis e Redemptoris nostri cruciatus), percebe-se que a maior preocupação do papado era com a liberdade de acesso aos lugares santos, o que explica a defesa de um status internacional para Jerusalém. De qualquer maneira, lembre-se que a Santa Sé e Israel normalizaram relações diplomáticas há 30 anos.

Ainda que tivesse um pano de fundo teológico, a oposição de Pio X (e de alguns de seus sucessores) ao estabelecimento de um Estado judeu é um juízo político-diplomático, que poderia estar certo ou errado

Conclusão?

A conclusão é óbvia. Católico que tenha um pingo de decência não pode usar nem a acusação de deicídio, nem o tratamento grosseiro que cristãos às vezes recebem de judeus, nem a opinião de Pio X sobre um Estado judeu, nem o fato de que em Israel o aborto é legalizado, nem nada para ficar indiferente diante do terrorismo contra os judeus, ou para pensar (nem vou falar de escrever) que “foi bem feito”, que “eles mereceram” ou qualquer outra coisa na linha do “mas veja bem...” Como diz o Polzonoff:

“Não há nada mais maligno, espiritual e intelectualmente, do que tornar complexo um acontecimento que choca por sua simplicidade: movidos pela ideologia, terroristas do Hamas mataram inocentes. Ponto. Ponto final. Ponto de exclamação. Qualquer que tenha sido a motivação desses homens não importa. Não desdiz a verdade insuportável de que as vítimas eram inocentes. Insuportavelmente inocentes. Inocentes, inclusive, dos possíveis e prováveis pecados de seus líderes políticos e grupo étnico/religioso.”

Isso não tem nada a ver com alinhamento incondicional a Israel. Você pode defender a solução de dois Estados, pode discordar de um milhão de coisas em Israel, pode inclusive achar que a operação atual esteja violando os princípios da guerra justa (aliás, o Franklin Ferreira tem uma série de artigos sobre a guerra justa em Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Bento XVI). Mas não me vá racionalizar o terrorismo, muito menos a sua reação de “no fundo, lá no fundo, eles merecem”.

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