Na semana passada, o Ministério da Saúde tentou, com uma nota técnica, abolir a distinção entre aborto e antecipação do parto, derrubando a recomendação anterior de que o aborto nos casos não punidos por lei não fosse realizado a partir do momento da viabilidade fetal. O texto não ficou nem dois dias em vigor e foi suspenso, sob a alegação de que a ministra Nísia Trindade não sabia do teor do documento – mas, se você realmente acredita que um texto dessa importância não passou pela ministra, vem cá, quer comprar um bilhete premiado?
E aí o católico que acompanhou tudo isso deve ter ficado se perguntando “mas e a CNBB? E a CNBB?” Muita calma nessa hora. Você não viu nenhuma manifestação pública no site ou nas mídias sociais da conferência. Mas, naquelas horas caóticas desde a divulgação da nota técnica até sua suspensão, inúmeras frentes pró-vida realizaram uma movimentação forte junto ao Ministério da Saúde para que o texto fosse derrubado, e uma fonte desses bastidores informou ao colunista que a CNBB e a Frente Parlamentar Católica também fizeram parte dessa marcação cerrada, invisível e bem-sucedida, ao menos temporariamente.
A dimensão pública é importante, mas a movimentação nos bastidores também é, e há momentos em que é preciso escolher entre uma e outra, e arriscar uma incompreensão momentânea para conseguir o melhor resultado. Há muitas outras brigas pela frente em defesa da vida, como a ADPF 442 (e também a 989, mencionada na nota técnica) no STF, e um possível projeto de novo Código Civil que está em elaboração, embora ainda não tenha chegado ao plenário do Congresso, e que será um forte golpe nos direitos do nascituro. Reze para que os absurdos não prosperem e reze pelos líderes do nosso episcopado, para que escolham sempre a melhor forma de lutar em defesa da vida.
Um cardeal anônimo, seus muitos acertos e um único erro
Em março de 2022, o vaticanista Sandro Magister publicou em sua coluna uma carta anônima, intitulada “O Vaticano hoje”, que já circulava entre os cardeais eleitores – aqueles com menos de 80 anos e que terão a missão de eleger o próximo papa, assim que o pontificado de Francisco terminar. Em janeiro do ano passado, Magister revelou que o autor, que assinava “Demos” (“povo” em grego), era o cardeal australiano George Pell, falecido havia alguns dias. Ainda que houvesse alguma controvérsia sobre a autoria, de fato o diagnóstico feito por Demos era muito parecido com o que Pell fazia em seus diários escritos durante o tempo em que passou injustamente preso, após uma falsa acusação de abuso: confusão doutrinal, critérios diferentes para lidar com ameaças (reais ou imaginadas) à unidade da Igreja, um estilo autoritário de governança, além de críticas à condução do processo do cardeal Angelo Becciu (ele mesmo um desafeto de Pell) – um assunto sobre o qual nada tenho a comentar, por ser bastante complicado e sobre o qual pouco me aprofundei.
Agora, um Demos II está na área. O site italiano La Nuova Bussola Quotidiana publicou no último dia 29 um novo texto anônimo, chamado “O Vaticano amanhã”, e que também é atribuído a um cardeal. O título e o pseudônimo do autor indicam uma intenção de continuidade em relação ao que Pell havia escrito. Ele parte de um pressuposto que alguns dão como certo, o de que estamos no fim do atual pontificado. Eu iria mais devagar com o andor. Ainda que Francisco já tenha 87 anos – mais que Bento XVI tinha quando renunciou, e mais que São João Paulo II tinha quando faleceu –, sua saúde parece em ordem, com os problemas limitados à locomoção. A imprensa passou uns bons dez anos atualizando obituários de João Paulo II; julgavam-no acabado desde meados dos anos 90, e ele seguia em frente.
As viagens mostram ao papa a riqueza e a variedade da Igreja, e mostram aos católicos que o papa está junto deles. Mesmo países secularizados ou onde católicos não passam de minorias são chacoalhados por uma visita papal
A carta de Demos II, como o próprio nome diz, é menos uma avaliação do papado atual e mais uma espécie de “programa de governo” que ele gostaria de ver implantado por quem vier depois de Francisco. O autor considera pontos fortes do atual pontificado a ênfase no cuidado com os mais pobres, vulneráveis e sofredores, na busca das “periferias existenciais” – afinal, a Igreja é mãe de todos e precisa ir a seu encontro levando a Boa Nova –, e no cuidado ambiental, pauta que a esquerda sequestrou, mas que é profundamente cristã, já que Deus deu ao homem a obrigação de “cuidar do jardim”. Estou de acordo com tudo isso. Mas Demos II também diz que Francisco será lembrado por sua intolerância diante de discordâncias, mesmo respeitosas, e por uma ambiguidade em questões de fé e moral que deixa a confusão crescer entre os fiéis. E me entristece dizer que também concordo com essa avaliação.
Assim como também concordo com parte do programa listado por Demos II: a Igreja não é uma democracia, mas também não é uma autocracia; ela precisa lembrar ao mundo que sim, Deus é infinitamente misericordioso, mas também é infinitamente justo, e que a opção deliberada pelo pecado cobra seu preço; precisa pregar a mensagem salvadora de Cristo sem acomodações às demandas do tempo presente e, principalmente, sem ambiguidades, especialmente nos aspectos de seu ensinamento moral que estão sob maior ataque hoje. O autor anônimo ainda afirma que o Colégio de Cardeais existe não para bajular o papa, mas para aconselhá-lo, e por isso o pontífice precisa escolher homens capazes e santos; de nada adianta diversificar geograficamente o colegiado para colocar nele alguma nulidade ou alguém de ortodoxia duvidosa (sim, “primeiro cardeal luxemburguês da história”, é contigo).
Onde eu discordo radicalmente de Demos II é no trecho sobre as viagens pontifícias. Diz ele: “Viagens globais funcionaram tão bem com João Paulo II por causa de seus talentos pessoais únicos e por causa de sua época. Mas os tempos e circunstâncias mudaram. A Igreja na Itália e na Europa – a casa histórica da fé – está em crise”, e depois afirma que o Vaticano precisa de uma limpeza organizacional, moral e financeira, e que o próximo papa precisa estar diretamente envolvido nisso. Não me parece que seja dessa forma. Demos II, pelo jeito, considera que a tal “limpeza” e as viagens pontifícias são algo mutuamente excludente, como se um papa só conseguisse prestar atenção em uma coisa ou outra. Mas Francisco viajou bastante e mesmo assim levou a cabo uma reforma da Cúria Romana – se foi uma boa reforma ou não, este é outro papo. De qualquer forma, a “limpeza” será bem mais simples se, com o perdão da repetição, o papa colocar gente capaz e santa nos lugares certos, gente que ame a Igreja. Assim ele não precisará ficar microgerenciando cada aspecto da vida no Vaticano.
Além disso, o papa é bispo de Roma, soberano da Cidade do Vaticano, mas também é o líder da Igreja em todo o mundo. As viagens mostram ao papa a riqueza e a variedade da Igreja, e mostram aos católicos que o papa está junto deles. Mesmo países secularizados ou onde católicos não passam de minorias são chacoalhados por uma visita papal, e isso pode valer muito bem para essa Europa onde a fé está em declínio. João Paulo II tinha, de fato, um “talento pessoal único”, mas quem poderia dizer que as viagens de Bento XVI – cujo perfil pessoal era bem diferente – foram menos bem-sucedidas? Arrisco dizer que, a não ser que haja impedimentos muito graves a grandes deslocamentos, as viagens se tornaram parte essencial do exercício do papado.
Já disse aqui e repito que minha oração por Francisco é aquela da Igreja, que viva por muitos anos – e que, além disso, faça um pontificado não como eu quero, nem como ele quer, mas como Deus quer. No entanto, chegará o dia da sucessão, mais cedo ou mais tarde. E aí, com exceção deste ponto sobre as viagens, creio que as prioridades estabelecidas por Demos II em sua carta são bem adequadas.
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