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Igrejas ortodoxas viraram a escolha de alguns católicos conservadores que estão descontentes com o pontificado de Francisco.
Igrejas ortodoxas viraram a escolha de alguns católicos conservadores que estão descontentes com o pontificado de Francisco.| Foto: dashamatviec/Pixabay

Mais uma vez, não sei como foi, só sei que foi assim: de clique em clique, fui parar em um blog de um grupo tradicionalista norte-americano, que entre outras coisas ajuda a treinar padres para celebrar a missa tridentina e organiza eventos e palestras sobre liturgia, música e arquitetura sacra etc. Até aí tudo ótimo, e eu pressuponho que todas as missas que eles anunciam sejam celebradas de acordo com as regras de Traditionis custodes. O que me chamou a atenção foi um outro texto, sobre a conversão à Igreja Ortodoxa de um certo Michael Warren Davis. Antes de botar o nome no Google, mal sabia quem ele era, mas isso é o de menos. Queria aqui destacar um trecho em específico do texto de Stuart Chessman:

“A conversão de Davis não é um exemplo das fissuras do catolicismo conservador? A respeito de suas pretensões ‘trads’, Davis realmente representava uma tendência conservadora dentro do catolicismo: defender aspectos da moralidade, fé e liturgia tradicionais católicas enquanto, simultaneamente, mostra reverência pela hierarquia e pelo papado. Sob o atual papa, esse balanço se tornou cada vez mais insustentável. Como diz a velha canção, não tem como ficar assim.

Indubitavelmente, muitos outros católicos estão considerando o passo que Michael Warren Davis deu. A ‘culpa’ por isso, no entanto, recai diretamente sobre o papa, a hierarquia católica e o clero. É a sua conduta ultrajante e escandalosa que motiva alguns fiéis a procurar na Ortodoxia o respeito pela tradição cristã, uma liturgia bela e reverente, e, acima de tudo, um foco no espiritual, na união do indivíduo e da comunidade com Deus. A Igreja Ortodoxa a que Davis se juntou não necessariamente é a resposta – muito mais poderia ser dito a respeito disso, contra e a favor. A Ortodoxia continuará a atrair uma minoria. Mas, em algum momento, de alguma forma e sobre algum tema, todos nós seremos forçados a escolher entre a lealdade ao establishment clerical e a verdade. E é a liderança da Igreja Católica Romana que criou essa situação – tornando possível para todos uma escolha que antes era inimaginável.”

Se uma pessoa com sólida formação católica decide pular fora da barca de Pedro, não pode culpar mais ninguém por isso, nem o papa, nem os bispos, nem os padres

Em resumo: se alguém deixa de ser católico para virar ortodoxo (grego, russo, o que for), a culpa é do papa Francisco.

Eu acredito na responsabilidade individual de cada pessoa pelos seus atos, e imagino que muitos leitores também acreditem. Então: você não pode recusar a ideia absurda de que, se um bandido puxa o gatilho de um revólver, a culpa é da “sociedade”, e ao mesmo tempo defender que, se uma pessoa resolve mudar de religião, a culpa é de um papa, um bispo ou um padre. Há circunstâncias que favorecem um certo comportamento ou ato, mas no fim das contas o bandido escolhe livremente fazer o que faz, e o converso também.

E o mais interessante desse caso específico é que não se trata de alguém sem formação católica, muito pelo contrário. Ninguém ocupa as posições que Davis ocupou (editor-chefe da Crisis, editor do Catholic Herald) sem conhecer muito bem a doutrina. Não duvido que Davis conhecesse de trás para a frente todos os argumentos em defesa do dogma da impossibilidade de salvação fora da Igreja Católica. Provavelmente conhecia o suficiente sobre história da Igreja para saber sobre maus papas (não estou dizendo que Francisco seja um deles, mas certamente Davis o considera assim) e sobre épocas em que o erro foi popular dentro da hierarquia, como a crise ariana. Se mesmo assim, com toda essa informação e formação, ele decidiu pular fora da barca de Pedro, não pode culpar mais ninguém por isso – e eu acho assombroso que Chessman diga algo como “a Igreja Ortodoxa a que Davis se juntou não necessariamente é a resposta”. Como assim, “não necessariamente”? Não é, e ponto. Que me desculpem os amigos ortodoxos, que têm o episcopado válido e têm Eucaristia válida, mas fico com o que o cardeal Joseph Ratzinger escreveu na Dominus Iesus:

17. Existe portanto uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele. As Igrejas que, embora não estando em perfeita comunhão com a Igreja Católica, se mantêm unidas a esta por vínculos estreitíssimos, como são a sucessão apostólica e uma válida Eucaristia, são verdadeiras Igrejas particulares. Por isso, também nestas Igrejas está presente e atua a Igreja de Cristo, embora lhes falte a plena comunhão com a Igreja Católica, enquanto não aceitam a doutrina católica do Primado que, por vontade de Deus, o Bispo de Roma objetivamente tem e exerce sobre toda a Igreja.”

Ou seja, ali atua a Igreja de Cristo, mas falta-lhe a comunhão com a Igreja na qual subsiste a Igreja de Cristo. É uma diferença importante.

“Ah, mas o papa isso, o cardeal aquilo.” O leitor habitual da coluna já sabe do que me deixa perplexo no pontificado de Francisco (na minha coluna sobre o arcebispo sedevacantista Viganò você pode achar um resumo), e sobre cardeais defensores de bobagens (para não dizer heresias mesmo) eu também já escrevi um bocado. Mas, assim como isso não me faz por um único segundo duvidar da legitimidade de Francisco como papa, também não me faz por um segundo considerar a possibilidade de mudar de igreja, justamente por crer que Cristo a mantém. Usando uma analogia não muito perfeita, eu sei, nunca vi ninguém mudar de time de futebol por causa de um técnico ruim ou de uma cartolagem incompetente; no máximo vai deixar de acompanhar com a mesma paixão, talvez pare de ir ao estádio... mas mudar de time, aí já é demais.

Existe um conceito muito interessante, chamado “Janela de Overton”, que consiste em uma “janela” dentro da qual colocamos os discursos considerados como consensuais, populares, razoáveis, até aceitáveis, e da qual excluímos discursos radicais ou absurdos. Essa janela pode ficar mais larga, mais estreita, se deslocar mais à direita ou mais à esquerda, de forma que algo hoje absurdo pode vir a ser aceitável, e vice-versa. Pois bem: a fé não se submete à Janela de Overton. Se algo não está de acordo com a fé, continuará a não estar ainda que inúmeros padres, centenas de bispos, umas dezenas de cardeais e até um papa digam ou defendam esse algo. Quem tem plena consciência disso não há de trocar a fé católica por nenhuma outra.

Quanto aos maus pastores – que existem, sem dúvida –, Deus haverá de cuidar deles e pedir-lhes contas, como aliás ouvimos na missa do último domingo (isso pra quem foi à missa nova, não à missa tridentina...), mas não vamos usá-los para terceirizar a responsabilidade por decisões que são única e exclusivamente nossas. Esse negócio de “a culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser” é divertido só até a hora em que a salvação da nossa alma entra em jogo.

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