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O padre Julio Lancellotti, convenhamos, faz muita bobagem. Já narrou documentário blasfemo; participou de passeata com demonstrações de apoio explícito aos terroristas do Hamas; já disse besteira da grossa inclusive sobre a própria história da Igreja Católica (veja aqui, no minuto 5’00”); e tem lá suas preferências políticas por gente que bate de frente com tudo o que é mais caro à Igreja. Isso faz dele um alvo bastante conveniente para a direita, especialmente em um ano eleitoral. E não demorou para um vereador paulistano resolver tomar a dianteira – não pelo que o padre faz de errado, mas pelo que faz de melhor.
Se levamos a sério o capítulo 25 do evangelho de São Mateus, sabemos que as chances de o padre Lancellotti nos preceder no Reino dos Céus são enormes
Rubinho Nunes, do União Brasil, é o autor do requerimento para uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo que, teoricamente, investigaria a atuação de ONGs na Cracolândia – mas a essa altura está bem evidente que o vereador, de olho no eleitor de direita e mesmo de centro, quer atirar no padre Julio para acertar em um aliado do sacerdote, o deputado federal Guilherme Boulos (PSol), pré-candidato à prefeitura da capital paulista. E é esta última informação que explica, ao menos em parte, por que a esquerda, em bloco, cerrou fileiras em torno do padre. Ninguém ali morre de amores pela Igreja; trata-se unicamente de proteger Boulos e de ainda jogar nos seus adversários políticos a pecha de inimigos da liberdade religiosa, perseguidores de padres, o que for.
A Cracolândia é uma chaga social gigantesca no coração da maior cidade do Brasil, e não tenho dúvida de que existe muita ONG que aposta na manutenção desse cenário de terror. Em nome dos mais diversos slogans bem-intencionados (ou nem isso), elas bloqueiam qualquer ação que busque tirar as pessoas do vício, assim como ONGs e outras entidades – como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à CNBB – lutam contra qualquer iniciativa que ajude a integrar os índios à sociedade brasileira, mantendo-os (contra sua vontade, inclusive) em um estado que já chamamos de “zoológicos humanos”. E sem dúvida deve haver muito dinheiro correndo por essas ONGs que só servem para fazer mal aos que elas afirmam estar defendendo. Quando o vereador afirma, no requerimento, que existe uma “máfia da miséria” em São Paulo, muito provavelmente tem razão, e uma investigação bem feita poderia desvendar muita coisa. A pergunta é o que o padre Lancellotti tem a ver com isso, como afirmou o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, no X/Twitter:
E de nada adianta alegar que o padre estaria sendo convocado apenas como testemunha por conhecer de perto o trabalho com a população de rua, já que o próprio Rubinho escreveu nas mídias sociais que “Essas ONGs, e o padre Júlio, vão sentar no BANCO DOS RÉUS, sim!” Ou seja, as intenções aqui em relação ao sacerdote estão bem escancaradas – o que, obviamente, não justifica o absurdo de um ministro do Supremo Tribunal Federal resolver agir politicamente para abafar a CPI, violando as regras da magistratura, o bom senso e a separação de poderes; isto, sim, merecia um destaque muito maior que o recebido até agora.
Como já disse aqui quando comentei o escândalo do documentário, não tenho motivo nenhum para duvidar do amor do padre Lancellotti pelos pobres e pelos esquecidos (meu único contato pessoal com o padre foi na década de 90, quando escrevi uma reportagem sobre a casa em que ele cuidava de crianças soropositivas abandonadas ou órfãs). Lamento profundamente por todo o resto, por suas opções políticas e ideológicas desastrosas, mas já disse e repito que, se levamos a sério o capítulo 25 do evangelho de São Mateus, sabemos que as chances de ele nos preceder no Reino dos Céus são enormes. Não digo que seja um santo – santos, pra mim, são a Madre Teresa e a Irmã Dulce –, nem que Mateus 25,31-46 seja o único critério; quanto a todo o resto, ele haverá de se entender com o Deus justo e misericordioso no dia do seu juízo particular. Mas que ele coloca em prática o “tive fome e me destes de comer” de forma heroica, isso ele coloca. Se isso nos incomoda de alguma forma, errados estamos nós, que precisamos nos perguntar todo dia onde Jesus nos poria na hora de separar as ovelhas e os cabritos.
Se Fiducia supplicans exige mais explicações, é porque está mal escrita mesmo
Podem dizer o que quiserem, mas, se o Dicastério para a Doutrina da Fé se vê na obrigação de publicar um comunicado à imprensa tentando explicar o que exatamente Fiducia supplicans diz ou como deve ser colocada em prática, é porque realmente o documento foi mal escrito. O problema é que o comunicado veio com espantalhos – todo mundo viu, por exemplo, que a declaração repetiu o ensinamento da Igreja sobre o sexo e o casamento, isso não está em jogo. Enquanto isso, o comunicado tenta reduzir a importância daquilo que é realmente problemático, como na distinção entre bênçãos “litúrgicas ou ritualizadas” e “espontâneas ou pastorais”, como se não houvesse problema algum em abençoar casais em situação irregular só porque não será usada nenhuma fórmula prevista nos livros litúrgicos.
Mas temos pequenos avanços. O comunicado diz que “as bênçãos não ritualizadas não são uma consagração da pessoa ou do casal que as recebe, não justificam todas as suas ações, não ratificam a vida que leva”, e que “ao dar esta bênção a duas pessoas que juntas se aproximam para implorá-la espontaneamente, não as estamos consagrando, nem nos estamos congratulando com elas, nem estamos aprovando o seu modo de união”. O mais importante, no entanto, é a instrução para que em tais bênçãos “simplesmente implora-se ao Senhor paz, saúde e outros bens para estas duas pessoas que as pedem. Ao mesmo tempo, implora-se que possam viver o Evangelho de Cristo em plena fidelidade e que o Espírito Santo as livre de tudo que não corresponde à vontade divina e de tudo que requer purificação” (grifo meu). O cardeal Fernández podia ter dito explicitamente que a vontade divina neste caso inclui a vivência da castidade? Podia, mas para quem conhece a doutrina isso fica implícito.
Também ressalto a afirmação de que a bênção “não deve acontecer num lugar importante do edifício sacro ou diante do altar, porque isto causaria confusão” – bem o contrário do que tem acontecido em muitas paróquias por aí. Mas, claro, vamos ver se haverá alguma ação contra os padres e bispos mais empenhados em solapar a doutrina católica; é isso que nos dirá se as orientações são mesmo a sério ou apenas uma tentativa de acalmar as reações bastante justificadas que o texto vem recebendo.