O tempo de germinação começou. No sábado, os participantes do Sínodo sobre a Sinodalidade aprovaram o documento síntese que resume esta primeira sessão realizada em Roma, e que oferece as linhas-mestras para a segunda sessão, programada para daqui a um ano. O problema é que a semente, a julgar pelo texto, não é assim de qualidade muito superior. Tem partes interessantes? Evidentemente que sim – gostei, por exemplo, dos trechos sobre os pobres e do apelo para que a Doutrina Social da Igreja seja melhor conhecida. Também é interessante a valorização do diaconato, já que o diácono não é um mero “assistente litúrgico” do padre. Mas o documento também confirma algumas das principais preocupações que já apareciam desde muito antes de os membros se encontrarem em Roma.
(Até agora, o Vaticano divulgou a versão oficial apenas em inglês, italiano e polonês; as traduções nesta coluna são minhas, e evidentemente extraoficiais.)
No início, o documento reconhece que há um grande medo em relação a este Sínodo. “Sabemos que ‘sinodalidade’ é um termo desconhecido por muitos membros do Povo de Deus, e que desperta em alguns confusão e preocupação. Entre os temores, está o de que o ensinamento da Igreja seja alterado, distanciando-nos da fé apostólica de nossos pais”, diz. No entanto, quem esperava na sequência alguma afirmação reconfortante em relação a isso não encontrará muita coisa a não ser o reconhecimento de que os termos “sinodal” e “sinodalidade” precisam ser melhor esclarecidos em relação ao seu significado; minha impressão é de que nem mesmo os membros saberiam muito bem explicar o que essas palavras significam na prática, para além da enrolação baseada na etimologia de “caminhar junto”. Tanto é assim que o documento propõe “um esclarecimento sobre as implicações canônicas da perspectiva da sinodalidade”.
E não há como não reparar que o documento fala, em determinado momento, de reconhecer a diversidade de tradições litúrgicas como algo positivo. “Da Eucaristia aprendemos a articular unidade e diversidade: unidade da Igreja e multiplicidade de comunidades cristãs; unidade do mistério sacramental e variedade de tradições litúrgicas; unidade da celebração e diversidade de vocações, carismas e ministérios. Nada melhor que a Eucaristia demonstra que a harmonia criada pelo Espírito não é uniformidade e que todo dom eclesial é destinado à edificação comum”, diz o texto. Difícil entender como isso se concilia com o esforço do papa Francisco em fazer do Novus Ordo a única expressão litúrgica da Igreja de rito romano, como o pontífice escreveu em Desiderio desideravi. Aliás, o documento sinodal fala muito em “escuta”, e queria muito saber se isso se aplica também aos fiéis que preferem o missal de 1962, que o papa vem se empenhando em restringir.
Que “controvérsia” existe na questão de possíveis bênçãos para uniões homoafetivas, ou na ordenação de mulheres, ou na comunhão para divorciados em nova união civil que vivem maritalmente? As respostas a essas perguntas são velhas e bastante conhecidas
Mas o complicado, mesmo, fica pro fim. No capítulo 15, sobre “discernimento eclesial e questões abertas”, lemos sobre um “contexto favorável para aprofundar questões controversas dentro da Igreja, os efeitos antropológicos das tecnologias digitais e da inteligência artificial, a não violência e a legítima defesa, as problemáticas relativas ao ministério, os temas ligados à corporeidade, à sexualidade e outros” (destaque meu). Tem verdades ali? Certamente que sim: Jesus jamais deu às costas a quem precisava de ajuda, e também é certo que “se utilizamos a doutrina com dureza e com postura julgadora, traímos o Evangelho; se praticamos uma misericórdia barata, não transmitimos o amor de Deus”. Mas aí se propõe iniciativas para “um discernimento compartilhado sobre questões doutrinais, pastorais e éticas controversas, à luz da Palavra de Deus, do ensinamento da Igreja, da reflexão teológica, e valorizando a experiência sinodal”, inclusive “dando espaço, quando apropriado, também à voz das pessoas diretamente afetadas pelas controvérsias mencionadas”.
Mas que raios são essas “questões controversas”? Controverso, pra mim, é algo que pode ter mais de uma resposta legítima, e aí a escolha é uma questão prudencial; ou, então, algo para o qual ainda não se chegou à resposta. Que “controvérsia” existe na questão de possíveis bênçãos para uniões homoafetivas, ou na ordenação de mulheres, ou na comunhão para divorciados em nova união civil que vivem maritalmente? Algumas perguntas até podem ser novas por tratar de situações que não existiam ou eram raras até pouco tempo atrás, mas as respostas são velhas e bastante conhecidas. A “controvérsia”, aqui, não existe; ela é inventada ou forçada. Controverso mesmo é se Maria morreu ou não antes de ser assunta aos céus, se extraterrestres inteligentes precisariam de redenção, quais os limites da guerra justa em um mundo com armas cada vez não convencionais, esse tipo de coisa. Além disso, quando se fala em “dar voz às pessoas afetadas”, estamos falando de quem? De militantes identitários ou de gente autenticamente empenhada em viver o que a Igreja pede, viver o “não peques mais” que Jesus pede à mulher adúltera que Ele salvou do apedrejamento?
Aí é que está o problema. Na teoria, o Sínodo sobre a Sinodalidade seria uma discussão sobre “métodos”, digamos: como a Igreja toma decisões, de que tipo de decisões estamos falando, quem deveria ser consultado, e por aí vai. Mas na prática estão discutindo já questões concretas, inclusive de cunho doutrinal, como se a Igreja fosse governada por maioria parlamentar, e isso sem que ninguém saiba direito o que é a tal da “sinodalidade”. A entrevista do cardeal Gerhard Müller ao National Catholic Register é muito reveladora neste sentido. “Estão abusando do Espírito Santo para introduzir doutrinas que são claramente contrárias à Escritura”, diz o cardeal, que participou das discussões do Sínodo. O cardeal Müller acrescenta que isso está sendo feito de maneira sorrateira – e o documento-síntese realmente não faz referências explícitas, mas subliminares. Esses próximos 11 meses serão muito interessantes para vermos aonde tentarão levar o Sínodo em outubro do ano que vem.
Caso Rupnik é mancha enorme no pontificado de Francisco
O documento-síntese do Sínodo menciona, em vários momentos, os casos de abuso dentro da Igreja e a necessidade de ouvir e acolher as vítimas. É irônico que, enquanto os trabalhos do Sínodo prosseguiam, o padre-artista esloveno que, após dezenas de acusações de abuso ao longo de muitos anos, fora expulso da ordem jesuíta, excomungado e “desexcomungado” (o que pode acontecer, quando existe arrependimento genuíno), parecia plenamente reabilitado, a ponto de em 25 de outubro a diocese de Koper, na Eslovênia, ter anunciado que Rupnik estava incardinado na diocese desde o fim de agosto e podia exercer seu ministério sem restrição alguma. Se não houve interferência direta do Vaticano para que isso ocorresse, ao menos a omissão houve.
A repercussão foi intensa – em uma boa medida da revolta despertada pela reabilitação de Rupnik, até o site IHU Unisinos, alinhadíssimo com Francisco e bastante crítico com qualquer coisa que cheire a conservadorismo, traduziu uma série de textos incisivos, inclusive questionando qual teria sido o verdadeiro papel do papa durante o desenrolar do caso. Após dois dias de justa indignação, o papa anunciou uma reviravolta. Na sexta-feira, dia 27, o Vaticano anunciou que os impedimentos legais para que Rupnik sofresse um processo canônico haviam sido removidos e o esloveno será investigado (ainda não se sabe quando) pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, que ainda está responsável pelos casos de abuso – por mais que o novo prefeito, cardeal Victor Fernández, já tenha dito que não se considera qualificado para cuidar desse tipo de assunto.
Algumas entidades de defesa de vítimas de abusos rapidamente recordaram o episódio de 2018, em que o papa fez pouco de acusações de acobertamento por parte de um bispo chileno, a ponto de afirmar que ele estava sendo “caluniado”. Assim como ocorreu agora, houve revolta, Francisco recuou e ordenou uma investigação; o resultado terminou com a renúncia coletiva de todos os bispos chilenos. Rupnik é muito mais conhecido que o bispo Juan Barros; seus mosaicos estão em igrejas de todos os continentes, incluindo santuários mundialmente famosos como Lourdes, Fátima e Aparecida. Até por isso deveríamos esperar que o Vaticano lidasse melhor com o caso, mas pelo jeito não foi o que aconteceu.
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