Enquanto por aqui teremos eleições em nível municipal, os norte-americanos estão em plena campanha para o mais próximo que o país tem de eleições gerais. Em 5 de novembro, serão escolhidos o novo presidente, todos os 435 deputados, um terço dos 100 senadores, 13 governadores, e legisladores em nível estadual em 44 dos 50 estados norte-americanos. E os bispos norte-americanos já têm, há mais de uma década e meia, um guia para orientar o eleitor católico.
Forming consciences for faithful citizenship surgiu em 2007, ano anterior à primeira vitória eleitoral de Barack Obama, e desde então tem sido revisado a cada quatro anos. Na assembleia geral do episcopado norte-americano realizada em 2023 chegou a surgir a proposta de reescrever totalmente o documento, mas a maioria dos bispos escolheu mudar apenas a introdução e as inserções feitas em boletins paroquiais. A versão mais atualizada está disponível gratuitamente no site da USCCB.
A nova introdução lembra quatro princípios “atemporais” que definem “o papel perene da Igreja na vida pública”: “o infinito valor e dignidade de toda vida humana, o bem comum, a solidariedade e a subsidiariedade”. E, logo depois, faz uma boa lista das prioridades, e da “prioridade prioritária”, se me permitem a redundância:
“A ameaça do aborto continua a ser nossa prioridade proeminente porque ataca diretamente nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis e sem voz, e destrói mais de 1 milhão de vidas anualmente apenas em nosso país. Outras ameaças graves à vida e à dignidade da pessoa humana incluem a eutanásia, a violência por meio das armas, o terrorismo, a pena de morte e o tráfico humano. Há, também, a redefinição do casamento e do gênero, ameaças à liberdade religiosa em nosso país e no exterior, falta de justiça para os pobres, o sofrimento de migrantes e refugiados, guerras e fome ao redor do mundo, racismo, a necessidade de maior acesso à saúde e educação, cuidado pela casa comum, e mais. Tudo isso ameaça a dignidade da pessoa humana.”
“A ameaça do aborto continua a ser nossa prioridade proeminente porque ataca diretamente nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis e sem voz.”
Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, na introdução revisada do documento Forming Consciences for Faithful Citizenship.
Os bispos estão certíssimos, tanto pela lista bem abrangente que fazem, porque de fato são áreas que merecem a preocupação (e a ação) dos católicos, quanto pela escolha da “prioridade máxima”. Esta será a primeira eleição presidencial, e a segunda eleição legislativa, sob as regras estabelecidas pela Suprema Corte em Dobbs v Jackson Women’s Health Organization, a decisão de 2022 que derrubou Roe v Wade e devolveu ao Legislativo o direito de legislar sobre aborto. O finzinho do Syllabus (uma espécie de “resumo” da decisão) diz o seguinte:
“O aborto é uma questão moral profunda. A Constituição não proíbe os cidadãos de cada estado de regular ou proibir o aborto. Roe e Casey[duas decisões pró-aborto, de 1973 e 1992 respectivamente] suprimiram essa autoridade. A Corte anula essas decisões e devolve essa autoridade às pessoas e seus representantes eleitos.”
Isso significa que o aborto voltou a ser um tema eleitoral forte; se até 2022 muitos candidatos, nos níveis federal e estadual, podiam lavar as mãos sobre o assunto alegando que a Suprema Corte já tinha definido a questão, agora já não podem mais fazer isso. Embora o texto de Dobbs deixe implícito que os protagonistas na formulação de leis sobre aborto sejam os estados, não há nenhuma afirmação taxativa a esse respeito, e aparentemente poderia haver legislação federal sobre o tema – de fato, após a decisão da Suprema Corte os democratas já apresentaram alguns projetos de lei tentando legalizar o aborto em todo o país, mas todos falharam; alguns não passaram nem pelo Senado, onde os democratas têm maioria mínima. Felizmente, também falhou o apelo de Joe Biden nas eleições legislativas de 2022, as midterms: o presidente, que se diz católico, pediu aos norte-americanos que votassem em candidatos pró-aborto justamente por serem pró-aborto. No entanto, os republicanos assumiram o controle da Câmara de Representantes, embora por uma margem menor que a projetada nas pesquisas.
O problema é que 2024 não traz grandes perspectivas para os católicos preocupados com a defesa da vida desde a concepção. Do Partido Democrata nem é preciso dizer nada; a legenda é tão abortista que os cada vez mais raros democratas pró-vida são ou escanteados pelo partido ou acabam saindo, como Joe Manchin e Tulsi Gabbard. Kamala Harris não é diferente do resto do partido: abortista até o talo, assim como o seu escolhido para compor a chapa como candidato a vice, o governador de Minnesota, Tim Walz.
E Donald Trump? Justiça seja feita, sem Trump não teríamos Dobbs. Suas três indicações à Suprema Corte foram fundamentais para possibilitar a maioria que derrubou Roe v Wade. Outro presidente republicano teria feito o mesmo? Possivelmente sim, mas quem fez de fato foi Trump, e a história não tem como lhe tirar esse mérito. O problema é que o Trump de 2024 está bem mais aguado a esse respeito, a ponto de escrever em sua mídia social, a Truth, que um eventual segundo mandato seu seria “ótimo para as mulheres e seus direitos reprodutivos”. Uma escolha de palavras tremendamente infeliz, pois todos sabem que “direitos reprodutivos” é uma expressão para disfarçar acesso ao aborto, misturado entre outras medidas. A chefe de imprensa da campanha de Trump se limitou a dizer que:
“Como o presidente Trump tem afirmado, ele apoia o direito de os indivíduos em seus respectivos estados determinarem suas leis sobre aborto. O presidente Trump também está e sempre estará firmemente empenhado em garantir que as mulheres tenham acesso aos cuidados de que necessitam para criar famílias saudáveis, incluindo acesso amplo à fertilização in vitro e controle de natalidade e contracepção.”
Para líderes pró-vida, Trump está trocando os princípios do Partido Republicano por mais votos entre os eleitores moderados
Trump tem desviado de todos os apelos das entidades pró-vida: afirmou que não proibiria o envio de drogas abortivas pelo correio, nem tem pedido voto em candidatos pró-vida ao Congresso e aos Legislativos estaduais. Na verdade, está sendo assertivo na direção contrária: em abril, disse que não sancionaria uma restrição federal ao aborto caso o Congresso aprovasse uma lei nesse sentido (seu candidato a vice, J.D. Vance, acaba de repetir a mesma coisa). E foi além: por quatro décadas, o Partido Republicano teve em sua plataforma oficial a defesa de restrições ao aborto em nível federal, mas Trump pressionou e, na convenção nacional do partido, em julho, conseguiu substituir esse item por sua própria visão, que deixa o tema para os estados – uma posição que não o impediu de criticar uma decisão da Suprema Corte do Arizona (nos EUA, cada estado tem sua Suprema Corte) que restaurava uma proibição quase total do aborto no estado, nem de chamar de “um erro terrível” a lei da Flórida que proíbe o aborto a partir da sexta semana de gestação.
Todas essas movimentações foram muito criticadas por líderes pró-vida, para quem Trump está trocando os princípios do Partido Republicano por mais votos entre os eleitores moderados, especialmente depois que algumas restrições ao aborto foram derrotadas em referendos mesmo em estados que costumam eleger candidatos republicanos. E as críticas têm fundamento. Claro, a alternativa do outro lado continua muito pior, e até por isso parece que Trump pode se dar ao luxo de estar fazendo e dizendo essas coisas sem medo de perder o voto dos pró-vida, que não querem Kamala na Casa Branca de jeito nenhum. Mas que o republicano não está facilitando a vida dos eleitores católicos, não está mesmo.
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