“Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (...) seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural(...) Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases. Portanto, caros irmãos no episcopado, ao defender a vida ‘não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo’.” (Bento XVI, discurso aos bispos do Maranhão em vista ad limina, 28 de outubro de 2010)
Essas palavras de Bento XVI me são muito especiais; eu era editor de Economia da Gazeta do Povo quando uma fonte em Roma me enviou esse discurso um dia antes de o papa proferi-lo. A reportagem que surgiu daí foi o maior “furo” (no jargão jornalístico, “furo” é a informação divulgada antes de todo mundo) da minha carreira e as palavras do papa se tornaram assunto comentado no país todo – algo totalmente incomum para um discurso feito durante uma visita ad limina. Houve quem dissesse que o papa queria interferir na eleição presidencial brasileira, já que o segundo turno ocorreria em alguns dias. Bobagem pura: o papa apenas reafirmou princípios importantíssimos para a ação dos bispos na esfera pública, em todo o mundo; além disso, Dilma Rousseff não estava disputando o segundo turno contra nenhum santo, e sim contra José Serra, o autor da primeira norma técnica a estabelecer o caos atual sobre a realização de abortos no SUS.
Joe Biden pediu explicitamente que, em novembro, os norte-americanos votem em candidatos favoráveis à legalização do aborto apenas por serem favoráveis à legalização do aborto. E esse é o tipo de atitude que merece a reprovação firme dos bispos
Neste exato momento, quem deveria estar refletindo sobre o ensinamento de Bento XVI são os bispos norte-americanos. Depois da anulação de Roe v. Wade pela Suprema Corte – “uma das coisas mais lindas que o Judiciário norte-americano já proporcionou ao país”, nas palavras do Flavio Quintela –, o tema do aborto virá com tudo na campanha eleitoral americana; ironicamente, essa decisão fundamental acabou sendo um presente para Joe Biden, já que, se as midterms de novembro girassem apenas em torno da economia, os democratas estariam perdidos. Com a Suprema Corte devolvendo aos estados a capacidade de regular o acesso ao aborto, candidatos a governador e aos Legislativos estaduais terão de se posicionar; eles não têm mais como se esconder nas decisões anteriores do tribunal. E, como há a possibilidade de haver legislação nacional sobre aborto, candidatos a senador e deputado no Congresso também terão de deixar claro o que pensam sobre o tema.
É aqui que entram os bispos, que têm a obrigação de denunciar qualquer projeto político que não respeita a vida humana em todos os seus momentos. Não se trata de dizer “votem neste ou naquele”, mas de traçar bem claramente a linha a partir da qual o voto se torna uma cooperação com o mal. Em todas as suas manifestações recentes, Joe Biden pediu explicitamente que, em novembro, os norte-americanos votem em candidatos favoráveis à legalização do aborto apenas por serem favoráveis à legalização do aborto. E esse é exatamente o tipo de atitude que merece a reprovação firme dos bispos. Uma coisa é votar em alguém apesar de ser abortista, um candidato que você considere ter as melhores ideias sobre economia ou outros temas, mas que por azar também é a favor da legalização do aborto – há toda uma discussão tão interessante quanto longa sobre a moralidade de um católico votar dessa maneira, e essa não é minha intenção aqui. Outra coisa, bem diferente, é votar em alguém porque o sujeito é abortista. Isso católico nenhum pode fazer, mas é o que o católico Joe Biden quer que os americanos façam.
A maneira como cada bispo reagiu à decisão do arcebispo Salvatore Cordileone, que proibiu os padres de sua arquidiocese de darem a comunhão à deputada Nancy Pelosi, já dá uma ideia de como a banda vai tocar até novembro. Infelizmente, duvido muito que os cardeais Cupich (arcebispo de Chicago), Gregory (Washington) e McElroy (San Diego) digam algo mais incisivo. É mais provável que a orientação de Bento XVI seja seguida por bispos com a fibra de um Cordileone (San Francisco), um Gomez (Los Angeles), um Strickland (Tyler, no Texas), um Tobin (Providence, em Rhode Island) um Naumann (Kansas City) ou dos bispos do Colorado.
E, claro, palavras ditas a bispos brasileiros jamais podem ser esquecidas pelos bispos brasileiros. Antes das midterms americanas, temos as nossas eleições. Já tivemos candidato à Presidência defendendo legalização do aborto, temos partidos que adoram apresentar projetos de lei com linguagem cifrada para tentar enganar os deputados, enfim, não faltarão oportunidades para os nossos bispos levantarem a voz. Que eles não nos deixem com saudades do falecido dom Luís Gonzaga Bergonzini.
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