Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana, no Cazaquistão, é bastante conhecido nos círculos católicos mais conservadores: ele denuncia sem rodeios as tentativas de “diluir” a doutrina católica e aceitar comportamentos condenados pela Igreja – inclusive quando tais tentativas vêm da cúpula católica –, reafirma a centralidade da Eucaristia na vida eclesial, defende a reverência litúrgica e o uso do missal de 1962. Também o papa Francisco é alvo das críticas de dom Athanasius em casos como o das recentes restrições impostas pelo pontífice à missa tridentina; para o bispo cazaque, a dureza de Francisco com os tradicionalistas não é usada contra relativistas doutrinais como os alemães do “caminho sinodal”, fomentando confusão entre os fiéis. Dom Athanasius classifica a crise atual da Igreja como a pior em sua história, mas crê em uma primavera que virá de baixo: das famílias, de novos seminaristas e sacerdotes. Em português ainda fluente, herança dos anos passados como padre no Brasil, dom Athanasius recebeu a coluna para uma entrevista após ter celebrado missa na catedral de Curitiba, na quarta-feira passada. Na noite anterior, ele havia proferido palestra no Instituto Santo Atanásio, responsável pela vinda do bispo à capital paranaense, a última etapa de sua passagem pelo Brasil.
O papa Francisco acabou de visitar o Cazaquistão. Qual a sua avaliação dessa visita?
A Igreja Católica no Cazaquistão é uma minoria, um pequeno rebanho de 0,5% da população em meio a uma maioria muçulmana, com uma presença razoável de ortodoxos russos. E esse pequeno rebanho se sentiu fortalecido na sua fé com a vinda do Sumo Pontífice, percebeu-se como parte da grande Igreja universal. Isso tem muito valor para nossos fiéis, que acolheram o papa com amor, respeito e carinho. Também as autoridades políticas, que constituem um governo secular em um país de maioria muçulmana, consideraram a presença do papa como um sinal de prestígio, já que a figura do papa é reconhecida como a principal autoridade moral do mundo, e o receberam de modo muito respeitoso e digno. Os cidadãos não católicos tiveram a mesma atitude: das 12 mil pessoas presentes à missa campal que Francisco celebrou, a maioria era de não católicos. O governo preparou tudo com muita generosidade, oferecendo desde o local para a missa até a assistência técnica e logística. A missa foi celebrada com muita reverência, em latim, com canto gregoriano; foi transmitida ao vivo pela televisão estatal e muitas pessoas no Cazaquistão puderam ver a cerimônia. Minha esperança é de que isso tenha tido efeito na vida de muitas pessoas não cristãs, que podem chegar à fé católica e reconhecer a verdade.
Se por esse lado a vinda do papa foi positiva, não posso dizer o mesmo da razão oficial da visita, pois o papa foi convidado pelo governo a participar do Congresso dos Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais. Considero esse tipo de evento prejudicial à vida da Igreja, pois passa a impressão de que todas as religiões são mais ou menos iguais, relativizando a unicidade da fé católica e de Jesus Cristo como única via da salvação. Nosso Senhor aparece ali apenas como mais um dos grandes fundadores e a Igreja Católica, como mais uma entre tantas religiões no que fica sendo um “supermercado de crenças”. Isso não corresponde à verdade do Evangelho; os apóstolos nunca fariam algo assim, e é um erro da parte da Santa Sé organizar, participar ou deixar que bispos e cardeais participem de tais eventos. A intenção é boa, é positiva, de promover a paz e o respeito mútuo em um mundo de tanta diversidade étnico-religiosa, mas a forma como esses congressos vêm sendo realizados, de Assis até agora, é prejudicial. E existe, ainda, o risco de tais eventos serem “sequestrados” pelas elites políticas internacionais para seus fins, que são o de difundir uma religiosidade vaga, que nega a unicidade da religião revelada, cristã e católica, e a substitui pelo completo relativismo religioso e moral, que é um dos grandes perigos de nosso tempo. Se é verdade que esses congressos, até o momento, não estão promovendo o relativismo moral, ao menos facilitam o relativismo religioso.
“Unidos, os representantes das várias religiões podem fazer muito pela defesa da vida humana desde a concepção até a morte natural, e pela defesa da concepção natural do ser humano, da família e do matrimônio entre homem e mulher.”
Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana (Cazaquistão)
Como, então, promover um diálogo que é necessário, até diante de problemas como a violência motivada por diferenças religiosas, sem comprometer a fé?
Há outros meios de promover a paz, a harmonia e o respeito mútuo entre as pessoas de diversas religiões. Minha própria experiência demonstra que é mais eficaz realizar eventos locais, não internacionais. Não um “supermercado de religiões”, mas um encontro de vida, entre vizinhos que somos. Ao estabelecermos laços de amizade verdadeiramente humana, damos exemplo de convivência respeitosa sem entrar no perigo de relativizar a única fé católica. Assim vamos promovendo, desde a base, a paz e o respeito mútuo.
Além disso, há uma forma muito importante de ação conjunta e convergência entre as diferentes religiões, que é a atuação, como concidadãos, em assuntos fundamentais para o bem da sociedade. Pensemos, por exemplo, na defesa incondicional da vida não nascida. Infelizmente, em congressos internacionais como este que acabou de ser realizado, não se faz o apelo pelo fim do aborto, que considero o mais hediondo mal da humanidade em nossos tempos, um verdadeiro genocídio. Vejo aqui uma grande omissão desses congressos, e que só demonstra como eles podem acabar instrumentalizados pelas elites políticas. Outro tema que merece ação conjunta das religiões é a oposição clara e veemente à ideologia de gênero e à destruição do matrimônio natural, da família criada por Deus. A ideologia de gênero é contrária à razão humana; os líderes das várias religiões precisariam se unir contra este verdadeiro absurdo, mas no nível mundial isso ainda não ocorre, daí a importância de começarmos a trabalhar juntos em nível local ou regional. Unidos, os representantes das várias religiões podem fazer muito nessas duas áreas: a defesa da vida humana desde a concepção até a morte natural; e a defesa da concepção natural do ser humano, da família e do matrimônio entre homem e mulher.
Que avaliação o senhor faz do estado atual da Igreja?
Vivemos uma grande crise, e isso ninguém pode negar. Estamos passando por um grande inverno da Igreja: na Europa e na América, igrejas são vendidas e fechadas por falta de fiéis; o clero vive uma crise moral; cresce a difusão do relativismo religioso e moral dentro da Igreja. O exemplo mais evidente é o da Igreja na Alemanha, mas tudo isso que descrevo ocorre em todo o mundo ocidental, com exceção da África e da Europa Oriental. Nas últimas décadas, a Igreja parece estar se empenhando em se adaptar ao espírito deste mundo, e nisso está a raiz muito profunda da crise atual da Igreja.
A Igreja já passou por outros tempos muito difíceis, como a crise ariana, ou a época dos papas imorais do Renascimento, ou perseguições não muitos séculos atrás. Como o senhor compara a crise atual às crises passadas?
Crise pior que a atual, até onde eu possa ver, não há como existir. A crise ariana se concentrou em um único tema, que era a divindade do filho de Deus. Por certo era algo essencial: essa heresia de fato abolia a Santíssima Trindade; se ela prevalecesse, deixaríamos de ser cristãos. Mas as definições dogmáticas dos concílios resolveram a controvérsia e o arianismo foi derrotado. A crise moral do papado, como o próprio nome diz, era moral, não dogmática ou doutrinal. As perseguições iluministas, maçônicas e comunistas vieram de fora da Igreja, e por isso mesmo a fortaleceram, ao contrário das perseguições internas, como ocorreu na crise ariana ou no tempo dos papas, cardeais e bispos imorais. Mas hoje a crise da Igreja se revela como um relativismo total. O próprio conceito de verdade já não existe: as verdades mudam; a verdade teológica, a verdade dogmática, as verdades morais e litúrgicas, tudo é mutável. Isso é o mais perigoso, porque nos tira todo o fundamento da fé, adaptada aos postulados do mundo incrédulo, ateu e materialista de nosso tempo.
Há saída para esta crise?
A Igreja é de Deus; ela não está nas nossas mãos, e devemos ter visão sobrenatural, confiando que Deus vai de novo conduzir a Igreja a uma verdadeira primavera, ao florescimento de uma vida profundamente cristã, devota, de novo zelo de santidade entre o clero, de recuperação da sacralidade da liturgia, de um novo afã missionário de pregar Jesus Cristo sem compromissos nem relativismos, como fizeram os apóstolos e os primeiros cristãos. Isso já está começando a ocorrer, na verdade. Em meio à crise, vemos pequenas realidades em todo o mundo ocidental de um verdadeiro renascimento espiritual, doutrinal e litúrgico. São pequenas comunidades, famílias jovens e numerosas, novos seminaristas e sacerdotes que desejam a integralidade da fé da Igreja de sempre, a beleza e a sacralidade da liturgia de todos os tempos e dos santos. Isto é obra do Espírito Santo e nos dá esperança e coragem. Repare que é algo que não vem de cima; vem de baixo, e Deus ama isso. Ele chama os pequenos para confundir os poderosos. Esse é o método de Deus, que ele usa também neste nosso tempo: ama e chama os pequenos, aqueles que não pertencem ao establishment ou à nomenklatura, para renovar sua Igreja.
Tivemos recentemente muitos boatos em torno de uma possível renúncia do papa Francisco, mas vieram os eventos de agosto, o consistório e a visita ao túmulo de Celestino V, e não aconteceu nada. O senhor acha possível, ou desejável, que Francisco renuncie?
O que Francisco pretende ou vai fazer eu não sei, mas creio que papa nenhum deveria renunciar se está lúcido e tem bons colaboradores. Viajar não está na essência do múnus pontifício, não é sua tarefa. Ele pode permanecer no Vaticano, governando a Igreja com bons conselheiros. A limitação física não é impedimento para um papa exercer sua missão. Um dos maiores papas da história da Igreja, São Gregório Magno, governou a Igreja por dois anos acamado, e governou bem. Seria melhor ir até o fim, à imitação de Cristo no seu sofrimento.
“Vemos pequenas realidades em todo o mundo ocidental de um verdadeiro renascimento espiritual, doutrinal e litúrgico. São pequenas comunidades, famílias jovens e numerosas, novos seminaristas e sacerdotes que desejam a integralidade da fé da Igreja de sempre.”
Dom Athanasius Schneider
Se o pontificado de Francisco terminasse hoje, como o senhor descreveria seu legado?
Se tivéssemos uma sede vacante hoje, infelizmente Francisco deixaria uma Igreja ainda mais confusa que no momento em que ele foi eleito. É simplesmente uma confusão geral. Posso dar um exemplo disso na atitude do papa em relação a movimentos como o “caminho sinodal” alemão. O primeiro dever do papa é confirmar os irmãos na fé. Ele assina seus documentos como “bispo, servo dos servos de Deus”. O grego episkopos significa “vigia” ou “vigilante”. A missão do bispo, então, é vigiar para que os lobos não entrem no redil. Mas Francisco age como o pastor que vê os lobos já dentro do redil e apenas lhes diz “ei, lobos, comportem-se bem”, sem expulsá-los. Isso é o que está acontecendo: Francisco enviou uma carta aos católicos alemães em 2019, agora houve esse comunicado da Secretaria de Estado, mas é ingenuidade, ilusão, achar que se vai resolver o problema apenas avisando. Os lobos escutam e começam a maltratar as ovelhas. É isso que está acontecendo na Alemanha e em outros países do ocidente: maltratam a fé dos simples fiéis, espalhando impunemente heresias dentro da Igreja. O papa vê isso e não vai além de algumas exortações ineficazes. É uma enorme diferença de tratamento em comparação com o que vem ocorrendo com os católicos que preferem a liturgia tridentina, por exemplo.
E por que existe essa diferença de tratamento tão evidente?
Este é um enigma para mim. É difícil dizer ao certo quais são as reais intenções do papa Francisco, mas parece que ele está sendo influenciado por seu entorno, que, do ponto de vista objetivo, demonstra ter – e isso se vê em documentos como Traditiones custodes e outros textos de dicastérios vaticanos que tratam da liturgia tradicional – autêntico desprezo por uma liturgia da qual a Igreja cuidou com muito amor e carinho, não só por séculos, mas por ao menos um milênio. Temos textos manuscritos mostrando que a mesma ordem da missa já existia ao menos no tempo de São Francisco de Assis, no século 13. O Concílio de Trento e o papa Pio V não mudaram nada; a liturgia é a mesma antes e depois desse concílio. O que se fez foi canonizar a liturgia romana, impondo-a às igrejas locais como norma mais segura. Só puderam continuar sendo celebradas as liturgias com mais de 200 anos de existência, o que era uma decisão sábia, porque a Igreja tem um grande respeito pela tradição.
Tantos santos amaram a liturgia tradicional, cresceram nela, tiraram sua força dela; ela não tem como ser prejudicial a ninguém. É como as orações que santificaram as gerações antigas; você poderia imaginar que alguém, hoje, resolvesse abolir o Credo dos Apóstolos, já que “os tempos são outros”? Você imagina um papa dizendo que não se poderia mais rezar o Credo dos Apóstolos só porque é antigo, e que deveríamos compor um novo texto? Ainda que esse novo credo fosse ortodoxo, nem assim os católicos o aceitariam por ser contrário ao uso milenar, santificado. Com o missal dito “tridentino” é a mesma coisa; ele não pode ser abolido, perseguido ou desvalorizado. O que está acontecendo é um abuso de poder da parte do papa, que prejudica o bem espiritual da Igreja. Temos de rezar e pedir – com reverência, não com desrespeito – que o papa revogue as medidas recentes, porque elas claramente fazem mal às almas.
Enquanto isso não acontece, o que os tradicionalistas deveriam fazer? Há risco de eles acabarem se isolando, criando “guetos”?
Acima de tudo, que eles sempre rezem pelo papa e pelo bispo, sem cessar. Do ponto de vista prático, do cotidiano, o meio ordinário da vida católica é a paróquia, mas a crise da Igreja é tão extraordinária que exige compreensão com fiéis e famílias que não conseguem encontrar uma liturgia mais digna ou não têm condições de ficar procurando boas missas e homilias, preferindo constituir grupos que lhes deem a garantia de receber a sã doutrina católica e ter uma liturgia digna. Isso é básico, é justo, mas tem de ser feito sempre em comunhão com a Igreja: esses pequenos grupos precisam, por exemplo, de um sacerdote autorizado pelo bispo ou pelo superior eclesiástico. Não existe uma pluralidade de pastorais na Igreja? Pois esses grupos podem contribuir, todos juntos, para a renovação da Igreja.
Tendo vivido parte da sua vida sob perseguição comunista, como o senhor avalia o acordo entre a Santa Sé e a China?
Passei minha infância dentro da Igreja clandestina, perseguida pelos comunistas soviéticos; conheci sacerdotes mártires e confessores, que não eram reconhecidos pelo governo. E posso dizer que a Igreja era mais viva. Isso não é apenas questão de experiência pessoal, a história da Igreja o demonstra com muitos mais exemplos. Mas este acordo entre a Santa Sé e o governo chinês é prejudicial para o verdadeiro bem da Igreja; os heroicos bispos, sacerdotes e fiéis da Igreja clandestina na China foram entregues à mercê de um governo claramente anticristão, ditatorial, que trata os cristãos com tirania; já está amplamente comprovado que a Igreja Católica está sendo usada como meio para promover o governo comunista. Seria melhor não ter feito acordo algum. Esse governo não é eterno, ele passará como todos os outros; e, quando isso acontecer, será melhor ter sido uma Igreja clandestina forte que uma Igreja que teve de ceder para ser “aceita” pelo Estado.
“Ainda que o próximo Sínodo não aprove nada mais radical, imagino um clima sempre mais e mais relativista, em que tudo continuará sendo questionado à exaustão para desestabilizar a Igreja em sua moral, doutrina e liturgia.”
Dom Athanasius Schneider
Mesmo depois do acordo, as prisões de bispos e destruições de igrejas continuaram, e agora há um cardeal sendo julgado em Hong Kong. Por que, então, a diplomacia vaticana insiste na renovação do acordo?
Isso é um mistério; eu me faço a mesma pergunta. Quando o cardeal Ratzinger ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, lamentou-se uma vez com um amigo, o cardeal Joachim Meisner, de Colônia – e isso me foi contado pessoalmente por Meisner –, que a Santa Sé, nas últimas décadas, vinha optando mais pela política que pela fé, sacrificando a fé no altar da política. Nisso a Santa Sé tem de mudar. Cristo não era político, os apóstolos não eram políticos. Mesmo perseguida, a Igreja vencerá, como venceu ao longo de toda a sua história.
Quais são suas expectativas para este Sínodo sobre sinodalidade? O que tentarão fazer com ele, e o que pode efetivamente acontecer?
Não sou profeta, mas minha experiência dos sínodos passados, especialmente os da Família e da Amazônia, além deste início de divulgação dos relatórios locais, mostra que tentarão novamente diluir a clareza da fé. O Sínodo pode se tornar o catalisador de um grande relativismo doutrinal e moral, e não excluo a possibilidade de os resultados do Sínodo já estarem preparados de antemão.
Mas ao menos nos Sínodos anteriores as expectativas mais radicais não se concretizaram.
É verdade, e espero que também agora o Espírito Santo sustente a Igreja e o papa para que não se aprovem coisas como o fim do celibato ou a ordenação feminina. Mesmo assim, imagino um clima sempre mais e mais relativista, em que tudo continuará sendo questionado à exaustão para desestabilizar a Igreja em sua moral, doutrina e liturgia; isso é certo. Por isso devemos rezar muito pelo papa, para que ele tenha força para confortar a Igreja e afugentar os lobos hoje vestidos de cardeais e bispos, nomeando verdadeiros pastores, intrépidos, zelosos e apostólicos.
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