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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Os extremos se unem

Quem ganha com as “fake news” sobre “padres gays”?

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O cardeal Matteo Zuppi, presidente da Conferência Episcopal Italiana, em foto de 2023. (Foto: Claudio Peri/EFE/EPA)

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O mundo católico viveu um caos noticioso nos últimos dias com a notícia de que o Vaticano teria aprovado uma diretriz da Conferência Episcopal Italiana permitindo que os seminários aceitassem candidatos homossexuais ao sacerdócio, desde que eles se mantivessem celibatários. Alguns sites noticiosos chegaram ao ponto de eliminar a menção à CEI, ao menos no título e no primeiro parágrafo, dando a impressão de que se trataria de uma orientação para toda a Igreja. É tudo mentira, e você leu a verdade aqui na Gazeta do Povo, ainda na noite de sexta-feira.

Até onde consegui descobrir, as fake news começaram com a agência noticiosa italiana Ansa, e a partir dali a coisa foi se espalhando mais rápido que um incêndio californiano. Aparentemente, ninguém que reproduziu a mentira se dispôs a verificar antes se o documento da CEI dizia aquilo mesmo. Por quê? Pode ser porque a Ansa tem lá sua credibilidade, mas eu não descarto outra explicação: a de que a notícia interessava a uma parcela militante da imprensa, e atiçaria o viés de confirmação daqueles que gostariam de ver uma Igreja que enfim deixasse para trás o “obscurantismo” e começasse a “abrir as portas” e atender às demandas da população LGBT. Para esse grupo, uma suposta permissão para padres homossexuais vem exatamente ao encontro do que se gostaria que acontecesse, e por isso a mentira foi passada adiante sem checagem nenhuma.

Mas existe um outro grupo que também teve seu viés de confirmação atiçado pela notícia mentirosa: o dos tradicionalistas radicais, para quem o Vaticano, as instituições curiais e até o papa Francisco estão irremediavelmente corrompidos. A “permissão para padres gays” seria nada mais que uma comprovação disso. Como a “notícia” bate certinho com a percepção que essas pessoas têm a respeito da cúpula da Igreja, é passada adiante da mesma forma, mudando apenas o tom, que passa a ser de revolta, em vez de celebração.

As “fake news” sobre “permissão para padres gays” atiçaram o viés de confirmação de dois grupos antagônicos: militantes identitários e tradicionalistas radicais

Foi o que vi acontecer no Facebook com um tradicionalista muitíssimo inteligente, autor de vários livros, que sabe defender a missa tridentina com maestria, mas que compartilhou o material da Ansa na sexta-feira. Os primeiros comentários inclusive antecipavam que qualquer tentativa de mostrar que a agência noticiosa estava errada seria coisa de “passadores de pano” – ou “popesplainer”, o termo mais usado pelos radicais tradicionalistas. Eu até comecei a escrever um comentário mostrando que era tudo fake news e que nem o Vaticano nem os bispos italianos haviam autorizado nada novo, mas desisti no meio. Limitei-me a jogar um link para um comentário do site italiano La Nuova Bussola Quotidiana, que nem de longe pode ser considerado “progressista”. 72 horas depois, na noite de segunda-feira, o responsável pela publicação original simplesmente botou um link para o site Rorate Coeli (que deu a informação correta, embora com um certo atraso, mostrando que não são todos os tradicionalistas críticos ao papa Francisco que entraram nessa), mas não apagou o que publicara antes, nem pediu desculpas por espalhar mentira sem verificar os fatos.

Esse é um caso em que a vontade de ter razão sobre a “corrupção dos líderes da Igreja” fala mais alto que a honestidade intelectual de suspender a indignação por alguns poucos minutos e ir buscar as fontes diante de uma notícia que pareça (porque realmente é) incoerente com a doutrina da Igreja. Eu tenho para mim que, na hora do julgamento, Deus haverá de ser mais brando com o jornalista descuidado e com o militante tosco que com o católico convicto que espalha fake news sobre a própria Igreja, mesmo que com uma suposta boa intenção de denunciar o mal.

O que o novo cardeal-arcebispo de Washington nos diz sobre “o sistema”

Antes das “fake news” sobre os “padres gays”, o assunto da hora era a nomeação do cardeal Robert McElroy para substituir Wilton Gregory à frente da Arquidiocese de Washington. Na imprensa secular, a escolha está sendo tratada como um “recado” ao presidente eleito Donald Trump; por essa ótica, o papa Francisco estaria querendo colocar em Washington um bispo que bata de frente com o ocupante da Casa Branca, especialmente em relação à imigração. Isso me interessa muito pouco, porque política migratória é um tema no qual o católico é livre para ter diversas opiniões, desde que respeitados princípios básicos como a proteção da dignidade humana (não se pode separar imigrantes ilegais de seus filhos pequenos, nem submetê-los a condições degradantes, por exemplo). Meu problema com McElroy é outro.

Quem lê a coluna há mais tempo sabe que McElroy é um cardeal bastante heterodoxo em questões de doutrina, especialmente em relação à moral sexual. Ele ainda é do tipo que não vê problema em dar a Eucaristia a políticos que se dizem católicos e são explicitamente abortistas. Só isso já seria problema suficiente, mas tem mais: McElroy ajudou a proteger o abusador Theodore McCarrick, ele mesmo um antigo arcebispo de Washington, laicizado pelo papa Francisco em 2019 após a série de barbaridades cometidas por ele ficar impossível de ignorar. Em 2018, quando o escândalo estourou de vez, McElroy, então bispo de San Diego (e que estava ciente dos abusos desde 2016), votou contra uma resolução da conferência episcopal norte-americana pedindo ao Vaticano mais velocidade e transparência em relação ao processo de McCarrick.

Muita atenção aqui: não existe nenhum indício de que McElroy seja ele mesmo um abusador ou que tenha ajudado a encobrir abusos. No máximo, há críticas à maneira como ele vinha conduzindo os processos judiciais contra a diocese de San Diego, relativas a abusos cometidos em épocas passadas, por sua resistência a assinar acordos de compensação, mantendo disputas judiciais caríssimas que levaram a diocese a declarar falência (pela segunda vez) em junho de 2024.

Como é, então, que um bispo como McElroy continua subindo na carreira eclesiástica? A resposta está no fato de que McCarrick se foi, mas o círculo que orbitava em torno dele quando ele era um cardeal poderoso não acabou. McElroy é parte desse círculo, como também é o cardeal Blaise Cupich, de Chicago, o principal incentivador da nomeação de McElroy para Washington, contra o impulso inicial do papa Francisco, segundo a apuração de Ed Condon, do The Pillar. Cupich, aliás, foi outro a votar contra a mesma resolução dos bispos americanos sobre McCarrick em 2018.

Theodore McCarrick se foi, mas o círculo que orbitava em torno dele quando ele era um cardeal poderoso não acabou

E aqui eu remeto o leitor a um ótimo texto de Darrick Taylor na Crisis, em que ele nos recorda que a Igreja, em seu aspecto puramente administrativo, acaba funcionando na base da indicação, e aí fazer parte dos círculos “certos” traz dividendos – esse é um tema bastante explorado em Uma força medonha, distopia de C.S. Lewis que encerra a Trilogia Cósmica. McCarrick, em seus dias de poder e prestígio, impulsionou seus protegidos dentro do episcopado, e eles continuam se ajudando. É um sistema – e, como diz Taylor, “um sistema é o que ele faz”. Uma espécie de “círculo certo” sem nenhuma conotação ideológica é o Colégio Pio Brasileiro, em Roma, que hospeda padres brasileiros enviados para fazer pós-graduação nas universidades pontifícias: aparentemente, passar por lá aumenta muito as chances de esse pós-graduando se tornar bispo no futuro – algo que a própria CNBB reconhece.

Reparem que isso também pode servir imensamente para o bem da Igreja, quando gente santa e virtuosa chega a posições que lhes permitam favorecer a ascensão de outras pessoas santas e virtuosas. A dificuldade, no caso da Igreja, é que 1. Normalmente os bispos santos e virtuosos não são carreiristas (ou ao menos se importam menos que os outros com isso); 2. Como diz Taylor, gente boa tem mais dificuldade em separar o joio do trigo que gente má, o que explica algumas nomeações episcopais e cardinalícias bem estranhas feitas por papas como João Paulo II e Bento XVI; 3. Quando os maus chegam a posições de poder (abertamente ou nos bastidores), fazem o diabo para não perdê-las, enquanto os bons suportam pacientemente a adversidade – pensemos no cardeal George Pell, que nos deixou há dois anos.

É por isso que, quando Francisco promoveu a reforma da Cúria, eu comentei que aquilo tudo parecia uma enorme manifestação de fé na burocracia como algo capaz de resolver a crise da Igreja, quando na verdade o fator determinante não é o organograma, mas a qualidade das pessoas que ocupam os cargos. Exatamente por isso temos de rezar muito para que Francisco tenha a sabedoria de indicar e se deixar aconselhar por pessoas santas. Não é porque os maus são “cheios de intensidade apaixonada” enquanto os bons são se importam, como no poema de Yeats, que Deus não encontra seus meios. Aconteceu em meados do século 16, como lembra Taylor; pode acontecer de novo.

Não culpe os maus padres e bispos por suas decisões – e um aviso de férias

Todo esse papo sobre maus cardeais me lembrou uma coisa. Sempre que escrevo aqui sobre a CNBB, por exemplo, leio comentários de leitores afirmando que deixaram de ir à missa ou até que mudaram de religião porque o papa isso, porque os bispos aquilo, a CNBB aquele outro... eu leio e lamento por ver tanta gente apoiando sua fé em pessoas falíveis, e não no Filho de Deus que fundou a Igreja e lhe prometeu estar com ela até o fim dos tempos. Já tratei disso anteriormente, comentando o caso de um católico que virou ortodoxo, mas pelo jeito precisamos renovar o alerta de vez em quando.

Aliás, vamos esclarecer aqui uma coisa. Não, o papa Francisco não é comunista. Parem com esse negócio, que não passa da versão direitista daquilo que a esquerda faz, de chamar de “fascista” todo mundo de quem eles não gostam. Eu tenho pra mim que quem incentiva a antipatia de outros católicos pelo papa e pelos bispos com esse negócio de “comunista” vai encarar um tempinho razoável de purgatório por violar o quarto mandamento.

Dito isso, deixo com vocês a incrível mensagem compartilhada pelo bispo Joseph Strickland no X este domingo. Ele retuitou um texto de um católico convertido, e deixo aqui uma tradução das partes que considero mais importantes:

“Alguns não entendem por que eu simplesmente não deixo a Igreja Católica devido ao fato de não gostar do papa Francisco. Aliás, alguns católicos até me pediram para sair. Como é possível que eu possa ser crítico do papa e ainda assim escolher permanecer em comunhão com Roma? A resposta tem a ver com minha conversão, lá em 2000.

Ficar chamando o papa ou a CNBB de “comunista” não passa da versão direitista daquilo que a esquerda faz, de chamar de “fascista” todo mundo de quem eles não gostam

Eu fui evangélico, virei anglicano e, depois, católico. Durante esse processo estudei a história do cristianismo. Aprendi sobre o papado e todos os papas desde Pedro: os bons, os maus e os feios. Aprendi que você não pode basear sua fé nesses homens. (...) Não há um único papa responsável por me tornar católico. Eu me converti ao catolicismo pelos sacramentos e pela ortodoxia – isso e nada mais –, porque creio que a Igreja Católica é a única igreja estabelecida por Cristo.

Então, por que sou católico? Pelos sacramentos e pela ortodoxia, não pelos padres, bispos ou papas. (...) Se você colocar sua fé nos homens, certamente você vai se decepcionar e, mais cedo ou mais tarde, perderá sua fé. (...) O papa Francisco não fez nada para me trazer à Igreja Católica, então não há nada que ele possa fazer que me leve a sair dela.”

É com esse puxão de orelha que eu me despeço dos leitores por um tempinho, já que estarei de férias e não teremos coluna nas próximas três semanas. Retornamos em 11 de fevereiro, festa de Nossa Senhora de Lourdes!

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