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Nos últimos dias, dois livros que li há muito tempo me vieram à cabeça: Bias – A CBS insider exposes how the media distort the news, de Bernard Goldberg, publicado em 2001, sobre o viés “progressista” da imprensa norte-americana; e The new anti-catholicism: the last acceptable prejudice, de Philip Jenkins, de 2004 (o título é autoexplicativo). Um livro tem mais de 20 anos, outro está para completar esse aniversário, mas ambos seguem muito atuais, a julgar pela reportagem da Veja em que uma jornalista, depois de afirmar que “o desejo de cada um por ter ou não filhos, não importa o motivo, deve ser respeitado no mais alto grau”, faz o contrário do que prega e passa a ridicularizar as famílias católicas com muitos filhos.
Aqui, na Gazeta, eu recomendo muitíssimo as colunas do Guilherme de Carvalho e da Samia Marsili sobre o assunto. Mas me permito acrescentar alguma coisinha sobre esse trabalho jornalístico malfeito, mal-intencionado ou (mais provavelmente) ambas as coisas. Reparem como a repórter acha suficiente lançar contra essas famílias dois rótulos, sem nem precisar elaborar muito: o de disseminadores de fake news e o de “negacionistas”. Os termos não são usados explicitamente, mas estão ali quando a reportagem diz que “perfis sob o guarda-chuva pró-vida ultrapassam 1 milhão de seguidores e, não raro, prestam o desserviço de espalhar mitos e inverdades sobre o tema” (quais mitos e inverdades? A matéria não diz) e que “esse modo de enxergar o mundo (...) colide com o da imensa parcela da humanidade, há tempos adepta da ciência da prevenção da gravidez”, como se não houvesse muita ciência por trás de métodos como o Billings e atestando efeitos negativos de outros métodos contraceptivos.
De políticas chinesas de “filho único” à objetificação da mulher na sociedade ocidental, tudo o que Paulo VI previu na Humanae vitae aconteceu exatamente como ele imaginou que aconteceria
A repórter nem esconde o seu desejo: “Que em um futuro próximo assunto tão crucial não fique adormecido nos escaninhos do Vaticano e possa ser trazido à luz sem tantos tabus”. Mas ué: o “assunto tão crucial” nunca esteve “adormecido”; foi bastante debatido e rendeu a encíclica Humanae vitae, que muita gente lê focando apenas na parte, digamos, “moral-disciplinar” da coisa, esquecendo totalmente (ou ignorando deliberadamente) toda a antropologia contida no texto, sem falar do seu caráter profético. Vejam lá o que afirma São Paulo VI:
“Considerem, antes de mais, o caminho amplo e fácil que tais métodos abririam à infïdelidade conjugal e à degradação da moralidade. Não é preciso ter muita experiência para conhecer a fraqueza humana e para compreender que os homens – os jovens especialmente, tão vulneráveis neste ponto – precisam de estímulo para serem fiéis à lei moral e não se lhes deve proporcionar qualquer meio fácil para eles eludirem a sua observância. É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada.
Pense-se ainda seriamente na arma perigosa que se viria a pôr nas mãos de autoridades públicas, pouco preocupadas com exigências morais. Quem poderia reprovar a um governo o fato de ele aplicar à solução dos problemas da coletividade aquilo que viesse a ser reconhecido como lícito aos cônjuges para a solução de um problema familiar? Quem impediria os governantes de favorecerem e até mesmo de imporem às suas populações, se o julgassem necessário, o método de contracepção que eles reputassem mais eficaz? Deste modo, os homens, querendo evitar dificuldades individuais, familiares, ou sociais, que se verificam na observância da lei divina, acabariam por deixar à mercê da intervenção das autoridades públicas o setor mais pessoal e mais reservado da intimidade conjugal.”
De políticas chinesas de “filho único” à objetificação da mulher na sociedade ocidental, tudo o que Paulo VI previu aconteceu exatamente como ele imaginou que aconteceria. A esse respeito, eu recomendo a monumental obra de Mary Eberstadt, que está sendo lançada em português pela editora Quadrante – comecem pelo fundamental Adão e Eva depois da pílula.
Conheço famílias de bons católicos com muitos filhos; conheço famílias de bons católicos, por cuja ortodoxia eu ponho a mão no fogo, com poucos filhos ou até nenhum. E não julgo nenhuma delas, até porque em alguns casos (não todos, porque também não fico perguntando) eu estou ciente das histórias e circunstâncias pessoais. É por isso que Samia escreve que “a rigor, a quantidade de filhos não importa: o que importa de fato é a quantidade de amor, de entrega, da qual o número de filhos pode, ou não, ser um símbolo”, pois é exatamente isso que a Igreja pede. Isso não tem nada de “tradicionalista”, “conservador”, “direitista” (sim, a repórter fez questão de colocar política no meio), “radical”; é simplesmente... católico.