Muitos católicos ficaram genuinamente preocupados com a nova declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé, Fiducia supplicans. O formato escolhido é pouco frequente; a última declaração, ainda da época em que o órgão se chamava Congregação para a Doutrina da Fé, tinha sido a Dominus Iesus, em 2000, quando São João Paulo II era papa e o cardeal-prefeito era Joseph Ratzinger. No entanto, enquanto Dominus Iesus era de uma clareza ímpar, Fiducia supplicans tem um estilo diferente e que pode confundir – menos pelo que está no papel e mais pelo que certamente farão dela.
A essa altura, o leitor já sabe do que se trata, mas vamos resumir: o documento trata de bênçãos, que são um sacramental (não confundir com sacramento), e mais especificamente de sua ligação com o sacramento do Matrimônio. Como nós sabemos, há bênçãos para tudo: pessoas, objetos, atividades, com texto devidamente padronizado e aprovado pela autoridade eclesiástica – volta e meia somos lembrados, por exemplo, de que existe no Ritual de bênçãos uma bênção para a cerveja, como se isso fosse a coisa mais incomum do planeta. Durante a celebração do matrimônio católico, existe uma linda bênção nupcial que faz parte do rito. Mas não é com isso que o documento está preocupado, e sim com as bênçãos a pessoas que estão em “situações irregulares” de relacionamento – mais especificamente, que estejam em uma nova união civil diferente do matrimônio canônico – ou pares homoafetivos. Essas pessoas podem chegar (de boa ou má-fé, pouco importa) a um padre e pedir uma bênção. E aí? O que o documento diz é que essas bênçãos podem ser concedidas, desde que com uma série de condições.
Vejamos primeiro o copo meio cheio. Em nenhum momento Fiducia supplicans fala em abençoar uniões, mas apenas em abençoar as pessoas que estão nessas uniões. Pode parecer a mesma coisa, mas estritamente não é. “Como a Igreja sempre considerou lícitas apenas as relações sexuais que se dão dentro do matrimônio, a Igreja não tem o poder de conferir a bênção litúrgica quando esse ato, de alguma forma, concederia legitimidade moral a uma união que se supõe como matrimonial ou que inclua uma prática sexual extramarital” (a tradução é minha; ainda não existe texto oficial em português), diz a declaração. Ela ainda afirma que o matrimônio é uma “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos”, e que não se pode “reconhecer como matrimônio aquilo que não o é”. Nisso o texto é irrepreensível.
O maior problema está nos padres e bispos que vão colocar a declaração em prática. O risco de a bênção para as pessoas se transformar em uma bênção para a união em si é enorme
Por isso, o documento ainda afirma que a bênção às pessoas vivendo em uniões não matrimoniais tem de ser espontânea, sem textos pré-aprovados por uma diocese ou conferência episcopal, justamente para evitar que a formalização leve os fiéis a entenderem que houve uma aprovação tácita dessas uniões. Além disso, a bênção não pode jamais ser dada simultaneamente à celebração civil da união, nem em conexão com ela; melhor que ocorra fora de qualquer celebração litúrgica; e não pode haver o uso de “vestimentas, gestos ou palavras próprias de um casamento” (suponho que isso valha tanto para o padre quanto para as pessoas que são abençoadas).
Essa é a letra do texto, mas ninguém precisa ter o dom da profecia para saber que tudo isso será tremendamente distorcido. O documento padece de clareza quando fala daqueles que, “reconhecendo-se desamparados e necessitados de Sua [de Deus] ajuda, não pretendem legitimar seu status, mas pedir que tudo o que há de verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e relacionamentos seja enriquecido, sanado e elevado pela presença do Espírito Santo”, sem dar muitos detalhes sobre quais são os aspectos dessas uniões que podem ser fortalecidos pela ação divina. Além disso, acho muito complicado falar em abençoar o casal, tratado como uma entidade única, o que cria uma ambiguidade (se foi intencional, não me cabe julgar); teria sido melhor falar em abençoar pessoas ou indivíduos que vivem em determinadas situações. Mas o grande problema está realmente nos padres e bispos que vão colocar a declaração em prática. O risco de a bênção para as pessoas se transformar em uma bênção para a união em si é enorme.
O documento diz que “a bênção exige que o que for abençoado esteja conforme a vontade de Deus manifestada no ensinamento da Igreja”, e que a bênção é “uma súplica para que Deus envie os auxílios provenientes dos impulsos do Espírito Santo (...) para que os relacionamentos humanos cresçam e amadureçam em fidelidade ao Evangelho, para que se livrem de suas imperfeições e fragilidades”. O dicastério ainda pede que “em uma breve oração antes da bênção espontânea, o ministro ordenado poderia pedir que as pessoas tenham paz, saúde, um espírito de paciência, diálogo e auxílio mútuo, mas também a luz e a força divinas para serem capazes de cumprir totalmente Sua vontade”. Aí é que está: a vontade de Deus para todos nós é que não pequemos. É assim que Jesus termina seu diálogo com a mulher adúltera que Ele salvou do apedrejamento: “nem eu te condeno; vai e não peques mais”.
Mas como é que um padre James Martin da vida, os sinodais alemães ou boa parte do clero belga vão colocar Fiducia supplicans em prática? Posso apostar que o farão validando o pecado, ou até mesmo dizendo que a vontade de Deus para essas pessoas é que sigam pecando – obviamente não dirão dessa forma, porque essa parte do clero já não vê pecado em nada, mas o ensinamento da Igreja está aí e não vai mudar, gostem as pessoas ou não. Os belgas, aliás, já têm até um texto aprovadinho para abençoar as uniões homoafetivas. Vão parar só porque o cardeal Victor Fernández ou o papa Francisco (que aprovou a declaração) pediram? Duvido muito. Assim como também acho plausível que mesmo padres bem formados, com critérios claros, evitem ser mais explícitos a respeito do que Deus e a Igreja esperam de pessoas em situações que vivem maritalmente fora do matrimônio católico, por medo de irem parar em um tribunal, acusados de homofobia.
A Igreja não é uma catraca; ela não nega a bênção a quem a peça de boa vontade e queira viver conforme a vontade de Deus, ainda que essa pessoa esteja em estado de pecado grave. Aliás, como o padre não adivinha pensamentos, ele não haverá de negar a bênção mesmo a quem apenas finja estar de boa vontade – esses haverão de se entender diretamente com Deus em outro momento. Fiducia supplicans bem que podia ser mais direta em certos pontos, especialmente em relação à valoração moral das uniões não matrimoniais, para deixar mais claras as distinções necessárias, mas também é verdade que a graça de Deus funciona de meios que não conhecemos e uma bênção pode ser o começo de um processo de conversão verdadeira. A declaração não abre as portas para se “abençoar o pecado”, e entendo o esforço de evitar os extremos – o de equiparar essas uniões ao casamento católico e o de fechar totalmente as portas a quem vive em situações extramatrimoniais –, mas neste exato momento os riscos me parecem maiores que os benefícios; rezo para estar errado.
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