O período do Natal, que deveria ser um tempo de paz e concórdia, foi transformado em tempo de pancadaria, tudo por causa de Fiducia supplicans. Cada um conhece a bolha de internet em que vive; a minha se dividiu em duas partes: a primeira está como o meme do cachorro dentro da sala em chamas dizendo que está tudo bem, e a segunda já está no nível do “papa mau”, “papa herege”, “Lefebvre cismou foi pouco”, e por aí vai. E, como muitos desses se conhecem de outras épocas, listas de e-mail, sites de apologética e comunidades de Orkut, uns sabem do que os outros estão dizendo e se xingam mutuamente; na melhor das hipóteses, o outro é “burro”; na pior, é “o verdadeiro problema da Igreja”. É muita caridade e misericórdia, e isso entre pessoas que genuinamente amam a Igreja, de um lado e de outro.
Por um lado, é evidente que não está tudo bem: estamos testemunhando um esforço talvez sem precedentes na história da Igreja para forçá-la a aceitar e legitimar atos e formas de vida que são frontalmente contrários ao seu ensinamento, um esforço que tem artífices fora e dentro da Igreja. Por outro lado, sabemos que Deus não abandona a sua Esposa; não a abandonou na crise ariana, nem no Grande Cisma do Ocidente, nem em outros momentos em que tudo pudesse parecer desmoronar, e por isso confiamos que Ele também não irá abandoná-la agora. A questão é saber onde Fiducia supplicans se encaixa nisso tudo.
Estamos testemunhando um esforço talvez sem precedentes na história da Igreja para forçá-la a aceitar e legitimar atos e formas de vida que são frontalmente contrários ao seu ensinamento
Passadas duas semanas desde que o texto veio à luz, parece-me cada vez mais que é um documento que pode até demonstrar uma boa intenção, mas que é mal escrito em suas partes mais cruciais, com ambiguidades (novamente, ainda não sei se intencionais ou não) que deixam frestinhas abertas para que a doutrina católica sobre o casamento e a família seja lentamente erodida – não abolida de repente, mas lentamente mitigada. Os defensores do documento podem continuar afirmando que não se está abençoando as uniões irregulares, seja as homoafetivas, seja as de divorciados que contraíram novo casamento civil, e de fato Fiducia supplicans não diz nada nesse sentido; mas, ao falar na “bênção de casais”, e não de indivíduos, continua me parecendo muito complicado, afinal só se é um casal em virtude de haver uma união, ou, em outras palavras, é a união que faz o casal.
O jornalista Austen Ivereigh publicou um texto sobre “como ler Fiducia supplicans” – como ele é uma espécie de assessor de imprensa extraoficial do papa Francisco, podemos considerar que o artigo é a explicação oficiosa da declaração. Não acho que Ivereigh tenha se saído muito bem, especialmente por forçar uma interpretação baseada no uso corriqueiro do termo “abençoar” em um idioma específico, e porque sua comparação com a bênção do padre Carmine a Rocky Balboa não para em pé: Rocky não quer que o padre abençoe seu relacionamento com Adrian (e além disso, se não me engano, quando essa cena acontece, em Rocky II – A revanche, eles já estão casados), mas pede a bênção porque está a caminho da maior luta de sua carreira.
Tampouco me convence a diferenciação que Ivereigh faz sobre a elaboração de Fiducia supplicans e a do Responsum de 2021 sobre bênçãos a uniões homoafetivas, argumentando que o novo texto foi resultado de uma “ampla e cuidadosa consulta”. Quem foi consultado? O plenário do Dicastério Para a Doutrina da Fé e o papa. Em tempos de “sinodalidade” pra lá, “sinodalidade” pra cá, “sinodalidade” pra todo lado, chamar de “ampla e cuidadosa consulta” algo que envolve no máximo umas dezenas de pessoas é contraditório, ainda mais comparando com casos recentes como a consulta ao episcopado que precedeu Traditiones custodes.
Mais interessante é ler a entrevista que o cardeal Victor Fernández deu ao The Pillar logo antes do Natal. Mesmo assim, entrevistador e entrevistado parecem mais preocupados em falar sobre o que a declaração não é e não diz do que sobre o que ela de fato prevê. Está lá inclusive a questão sobre “abençoar a união vs abençoar o casal”, e Fernández se limita a repetir a distinção que o texto faz, sem levar em conta aquilo que acabei de mencionar, que só se é um casal por se estar em uma união. É positivo, no entanto, que o cardeal tenha considerado “inadmissível” o que está acontecendo na Bélgica e na Alemanha, onde já existe até ritual de bênção para uniões homoafetivas com aprovação de conferência episcopal – embora eu ache os alemães e os belgas não vão parar só porque Fernández ou o papa pediram. Pena que não tenham falado do caso do padre James Martin, que deu publicidade máxima à primeira bênção a casal homoafetivo que ele concedeu depois de Fiducia supplicans (seria capaz de apostar que ele já deu várias outras antes do documento), já que Fernández também falou em discrição.
Creio que não haveria uma rejeição tão veemente ao texto se ele fosse mais claro e evitasse as ambiguidades que serão exploradas no médio e longo prazo
Mesmo trazendo algumas informações importantes – por exemplo, a de que o cardeal-prefeito deve ir à Alemanha em breve –, a entrevista ajuda a entender como o texto da declaração ficou confuso e ambíguo o suficiente para despertar uma reação que não creio ter sido prevista nem por Fernández nem pelo papa, pois foi muito além dos “suspeitos de sempre”, a ponto de o cardeal ter de afirmar, em entrevista a um jornal espanhol publicada depois do Natal, que caberá a cada bispo decidir como colocar a declaração em prática. Conferências episcopais mundo afora já se manifestaram rejeitando a aplicação de Fiducia supplicans, seja por considerar o documento em si heterodoxo ou para impedir eventuais aplicações heterodoxas. O argumento de que a reação na África foi mais forte porque as conferências episcopais não querem ter problemas com governos que criminalizam a homossexualidade não me parece bom; primeiro, porque há bispos africanos que criticam abertamente essa criminalização (no que fazem muito bem, aliás); segundo, porque sempre que foi necessário a Igreja se colocou como contraponto ao Estado; e terceiro, porque houve reação idêntica a Fiducia supplicans em muitos outros países e dioceses onde não existe esse tipo de repressão legal.
Se há algo de indubitavelmente bom em Fiducia supplicans é a mentalidade implícita no texto pela qual a Igreja tem de estar próxima a todos, ser o tal “hospital de campanha” de que Francisco fala desde que se tornou papa. Ela não abençoa nem promove o erro, mas também não fecha as portas a ninguém que deseje um encontro genuíno com Cristo e queira segui-lo, apesar de suas fraquezas e suas cruzes. Eu estaria querendo colocar limites à graça divina se negasse que uma bênção a pessoas que vivem em situações objetivas de pecado – sejam quais forem, tenham ou não a ver com o sexto mandamento – possa disparar nelas um processo de verdadeira conversão. Mas também creio que não haveria uma rejeição tão veemente ao texto se ele fosse mais claro e evitasse as ambiguidades que serão exploradas no médio e longo prazo – e, a respeito de confusão e do mal que ela pode causar, recomendo muitíssimo o texto do arcebispo Charles Chaput na First Things. Por que não trabalhar, por exemplo, em um bom programa de acompanhamento pastoral para quem está nessas uniões? Por que não incentivar apostolados como o Courage? Essas são formas ainda mais eficazes de dar a todos o acolhimento merecido, sem atos isolados que podem ser instrumentalizados para dizerem o contrário do que a Igreja diz.
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