Detalhe de “Cristo expulsando os vendilhões”, de Rembrandt. Ontem, os mercadores deturpavam o templo; hoje, os militantes políticos deturpam a Igreja.| Foto: Reprodução/Domínio público
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Uns dias atrás viralizou a imagem de um folheto de missa de uma paróquia paulistana com um daqueles textos que colocam na última página para terminar de preencher o espaço. E tenho que admitir: já li muita besteira nessas “reflexões”, mas a paróquia de Nossa Senhora do Carmo, no bairro de Itaquera, conseguiu bater todos os recordes. Diz ali que o texto foi cometido pelo Conselho Paroquial de Pastoral, mas poderia muito bem passar por algo saído de algum centro acadêmico de uma das faculdades de Humanas da USP.

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O título do texto é “A extrema direita se recompõe” – porque, você sabe, não existe “apenas direita”, só “extrema direita”. À medida que vamos lendo, aliás, vemos que não se trata simplesmente de “extrema direita”, mas de “extrema direita neofascista”, com exemplos como o norte-americano Donald Trump, o israelense Benjamin Netanyahu, a italiana Giorgia Meloni, o húngaro Viktor Orbán, o argentino Javier Milei (que é muito mais libertário que direitista) e, claro, o brasileiro Jair Bolsonaro. E dá-lhe críticas ao “golpe” que destituiu Dilma Rousseff, e à reforma trabalhista de Michel Temer. Um trecho do texto diz o seguinte:

“As próximas eleições municipais nos desafiam marcar [sic] posição entre dois projetos de civilização: privatizações, políticas de morte contra a juventude negra e periférica e aumento das desigualdades. Por outro lado, a luta por justiça, igualdade e construção de uma cidade menos hostil, com moradia e transporte para todos.”

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Se Jesus expulsou os vendilhões do templo dizendo que haviam transformado a casa de seu Pai em “casa de negócio”, os vendilhões modernos fizeram da casa de Deus um reduto de politicagem

Nem o heresiarca Manes, fundador do maniqueísmo, conseguiria ser tão maniqueísta.

Os autores ainda citam o exemplo da França, “que através de uma frente popular de esquerda derrotou a extrema direita, numa virada histórica nas eleições de julho”. Só esqueceram de dizer que a virada jamais aconteceria sem a ajudinha do grupo político de Emmanuel Macron, e que de nada adiantou a virada porque ninguém terá maioria sólida na Assembleia Nacional francesa pelos próximos meses. Mas isso seria esperar demais dos militantes do Conselho Paroquial de Pastoral.

Por fim, o call to action: “Derrotar a extrema direita nessas eleições, em São Paulo, é fundamental e possível”. Só faltou mesmo pedir voto pro Guilherme Boulos. Ou, para bom entendedor, nem isso faltou.

Muito mais fundamental, no entanto, é derrotar os extremos militantes que usam a Igreja para fazer pregação político-partidária e se aproveitam de posições de comando e relevância para impor as próprias preferências políticas a todo o povo fiel, preferências que nada têm a ver com o que a Igreja pede e ensina. Se Jesus expulsou os vendilhões do templo dizendo que haviam transformado a casa de seu Pai em “casa de negócio”, os vendilhões modernos fizeram da casa de Deus um reduto de politicagem.

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Uma coisa é orientar as pessoas a não votar em candidato abortista, ou que seja hostil à liberdade religiosa, ou que deseje colocar empecilhos absurdos a iniciativas de ajuda aos pobres. Isso estaria em linha com o ensinamento moral e a Doutrina Social da Igreja. Outra coisa é querer empurrar aos fiéis a oposição a certas medidas recorrendo à autoridade de um conselho paroquial.

Pároco diz que objetivo é formar “consciência crítica” e fomentar discussão

O padre Paulo Sérgio Bezerra, pároco da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, conversou com a coluna. Afirmou que todo o episódio já foi esclarecido com o bispo de São Miguel Paulista, e atribuiu a repercussão negativa à “malícia de gente que nem é daqui da paróquia” e que “tirou tudo do contexto”. Disse, ainda, que sabia do conteúdo do folheto, por também fazer parte do Conselho Paroquial de Pastoral, e afastou a possibilidade de os fiéis acharem que o conteúdo reflete a doutrina da Igreja sobre qualquer dos assuntos. “O texto tem a assinatura do Conselho, não da diocese, nem da CNBB, nem nada. É a nossa opinião. Nem foi lido na missa, o objetivo era que as pessoas lessem em casa e discutissem, podiam concordar ou não”, afirmou.

No entanto, se a ideia é a “formação crítica da consciência”, como defende o sacerdote, não faria sentido que os fiéis fossem expostos aos argumentos contrários sobre esses assuntos para formar sua opinião, já que são temas para os quais não existe palavra definitiva do Magistério? Afinal, não há uma “visão católica” sobre a melhor forma de relação trabalhista, sobre modelos previdenciários, sobre taxas de juros – a respeito de privatizações, aliás, tenho certeza quase absoluta de que o Conselho Pastoral de Paroquial está em plena oposição ao princípio da subsidiariedade, um dos pilares da Doutrina Social da Igreja. Mas, questionado sobre se a paróquia permitiria a publicação de um contraponto, padre Paulo Sérgio respondeu que, “se não for para formar consciência crítica, nós não publicamos”. É muito amor ao debate.

Reforço aqui: não se trata de ignorar completamente os temas políticos e sociais; ainda que o Reino de Deus não seja deste mundo, a Igreja e os católicos têm a obrigação de lutar pela dignidade humana, pela proteção dos mais vulneráveis, para que todos tenham o que comer. Isso é mandamento divino, e para nos orientar corretamente a respeito de como buscar esse ideal os católicos podem contar com a Doutrina Social. A deturpação ocorre quando outros interesses se aproveitam de meios como um folheto de missa para fazer avançar uma agenda que não é a da Igreja, mas apenas dos que a estão usando.

Que amor inexplicável é esse que setores do Vaticano têm por Rupnik?

No Brasil celebramos a Assunção de Nossa Senhora no último domingo, mas o dia exato da solenidade foi quinta-feira, dia 15. E, para ilustrar um texto sobre a data, quem é que o pessoal do setor de comunicações da Santa Sé escolhe? O padre ex-jesuíta e abusador Marko Ivan Rupnik, acreditem se quiserem.

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Não que faltassem opções. A Assunção de Nossa Senhora é tema amplamente usado na arte, e o Vatican News poderia ter escolhido alguma dessas cinco obras, por exemplo, muito mais belas e sem controvérsia alguma:

Detalhe de "Assunção da Virgem", de Peter Paul Rubens.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
Detalhe de "Assunção da Virgem", de El Greco.| Foto: Google Art Project/Wikimedia Commons/Domínio público
Detalhe de "Assunção da Virgem", de Annibale Carracci.| Foto: Web Gallery of Art/Wikimedia Commons/Domínio público
Detalhe de "Assunção da Virgem", de Moretto da Brescia.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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"A Assunção da Virgem", de Francisco Botticini.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Tem muito mais aqui.

E nem é um fato isolado, é um padrão. Obras de Rupnik (ou do Centro Aletti, que executa as ideias do esloveno) decoram os artigos do Vatican News sobre a solenidade do Sagrado Coração de Jesus; a solenidade de São José; a festa de Maria, Mãe da Igreja; a solenidade da Santíssima Trindade; a festa de Santa Maria Madalena; a solenidade da Imaculada Conceição; o Natal; e a festa da Sagrada Família (os links remetem aos textos em português, mas ao menos os textos em inglês têm as mesmas imagens).

E isso que no fim de junho o cardeal Seán O’Malley, presidente da Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores, disse com todas as letras, em uma carta enviada a todos os dicastérios, que o Vaticano deveria parar de promover arte feita por pessoas no mínimo suspeitas de cometerem abusos. A “prudência pastoral recomenda não exibir obras de arte de uma forma que poderia indicar ou uma exoneração, ou uma defesa sutil [de abusadores ou suspeitos de abuso] (...), ou uma demonstração de indiferença diante da dor e do sofrimento de incontáveis vítimas (...) Temos de evitar passar a mensagem de que a Santa Sé fecha os olhos à angústia psicológica pela qual tantos estão passando”.

Não é só a pessoa de Rupnik que desaconselha a promoção de sua arte em santuários ou nas publicações do Vaticano; características de seu estilo também depõem contra

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Ninguém, hoje, dentro da Igreja, entende mais do assunto que o cardeal O’Malley, a quem o papa Francisco encarregou de liderar a resposta da Igreja ao escândalo dos padres abusadores, ainda em 2014. O que ele diz e recomenda deveria ser ouvido por todos dentro da Cúria, inclusive Paolo Ruffini, o chefe do Dicastério para as Comunicações, que dias antes da carta de O’Malley havia defendido o uso da arte de Rupnik nos artigos do Vatican News. Mas o capuchinho norte-americano está de saída: acabou de fazer 80 anos e já virou arcebispo emérito de Boston. Difícil saber quanto tempo ele ainda passará à frente da comissão encarregada de lidar com os abusos, já que a regra geral estabelecida na recente reforma da Cúria determina que os clérigos deixem seu cargo aos 80 anos. Já Ruffini, caso raro de leigo à frente de um dicastério vaticano, está no cargo desde 2018, e até onde sei os leigos não estão sujeitos ao limite de dois mandatos de cinco anos imposto aos clérigos na reforma da Cúria.

Em uma das primeiras vezes que escrevi sobre Rupnik (se não foi a primeira), disse que achava seus mosaicos bonitos, embora não fossem meu estilo artístico favorito. No entanto, fui lendo mais sobre sua arte e andei revendo essa opinião. Hoje percebo que o que me atrai ali é sua inspiração (remota) na arte bizantina, mas andei prestando mais atenção a alguns elementos muito estranhos de suas obras, como aqueles enormes olhos todos pretos. E com isso também estou revendo meu impulso inicial de defender uma decisão de “manter as obras, mas sem ignorar a pessoa por trás delas”. Não é só a pessoa de Rupnik que desaconselha a promoção de sua arte em santuários ou nas publicações do Vaticano; características de seu estilo também depõem contra. O patrimônio artístico da arte sacra é vastíssimo, e é impossível que hoje não tenhamos gente talentosa que poderia ocupar os espaços hoje dados a um abusador.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]