Enquanto o Sínodo não começa para valer – os participantes estão em um retiro espiritual que termina hoje –, o assunto é a série de perguntas, formalmente chamadas dubia, enviadas ao papa Francisco por cinco cardeais, e as respostas do pontífice, que já começaram a causar uma boa dose de sensacionalismo e distorção na imprensa secular. Os dubia são um direito e às vezes um dever dos cardeais, que têm entre suas funções a de serem os conselheiros mais próximos do papa, e servem para esclarecer pontos que eles julguem necessitar de uma resposta mais clara por parte do chefe da Igreja.
Em julho, os cardeais Walter Brandmüller (94 anos, presidente emérito do Pontifício Comitê de Ciências Históricas), Raymond Burke (75 anos, prefeito emérito da Signatura Apostólica), Juan Sandoval Íñiguez (90 anos, arcebispo emérito de Guadalajara, no México), Robert Sarah (78 anos, prefeito emérito da Congregação para o Culto Divino) e Joseph Zen Ze-kiun (91 anos, bispo emérito de Hong Kong) enviaram ao papa cinco perguntas sobre a possibilidade de reinterpretar a Revelação divina com base em mudanças culturais; sobre se a Igreja pode abençoar uniões homoafetivas; sobre se o Sínodo dos Bispos ou a sinodalidade em si têm algum caráter ou poder regulatório; sobre a possibilidade de as mulheres receberem a ordenação sacerdotal; e sobre a necessidade do arrependimento para a absolvição sacramental dos pecados. O papa respondeu logo depois, o que já é um grande avanço considerando que Francisco deixou no vácuo quatro cardeais que haviam enviado dubia relacionados à Amoris laetitia – dois deles até já morreram; os outros dois são Brandmüller e Burke.
Todas as respostas de Francisco aos dubia enviados em julho começam reafirmando o ensinamento tradicional da Igreja, mas depois vêm com vários “mas vejam bem...”, o que não é assim muito esclarecedor
O problema é que as respostas aos dubia são meio, com o perdão do trocadilho, dúbias mesmo. Elas foram tornadas públicas pelo novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, cardeal Victor Fernández – leia aqui a versão oficial, com perguntas em italiano e resposta em espanhol, e uma tradução não oficial em inglês, mas feita pelo Vatican News, o que faz dela algo semioficial, poderíamos dizer. Todas elas começam reafirmando o ensinamento tradicional da Igreja, mas depois vêm com vários “mas vejam bem...”, o que não é assim muito esclarecedor. Um pouco, temos de dizer, por culpa dos próprios cardeais, que deixaram as questões meio abertas, permitindo esse tipo de resposta. Por isso, o quinteto resolveu reescrever as perguntas e enviá-las de novo ao papa em agosto, em um formato que se pode responder com um simples “afirmativo” ou “negativo”, conforme a prática tradicional da Igreja, inspirada em Mateus 5,37. Elas ficaram assim (a tradução, desta vez, é minha):
1. É possível que a Igreja, hoje, ensine doutrinas contrárias às que ela havia ensinado previamente em assuntos de fé e moral, seja pelo papa ex cathedra, ou nas definições de um Concílio Ecumênico, ou no magistério ordinário universal dos bispos dispersos pelo mundo (cf. Lumen gentium 25)?
2. É possível que, em algumas circunstâncias, um pastor abençoe uniões entre pessoas homossexuais, sugerindo assim que o comportamento homossexual não seria contrário à lei divina e à jornada pessoal em direção à Deus? O ensinamento do magistério ordinário universal pelo qual todo ato sexual fora do matrimônio, e em particular os atos homossexuais, constitui um pecado objetivamente grave contra a lei divina, independentemente da circunstância em que ocorra e das intenções com as quais é praticado, continua a ser válido?
3. O Sínodo dos Bispos a se realizar em Roma, e que inclui apenas alguns representantes selecionados dos pastores e dos fiéis, exerce, em assuntos doutrinais ou pastorais sobre os quais seja chamado a se pronunciar, a Suprema Autoridade da Igreja, que pertence exclusivamente ao Romano Pontífice e, una cum capite suo, ao Colégio dos Bispos (cf. cân. 336 do Código de Direito Canônico)?
4. A Igreja poderia, no futuro, ter a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, assim negando que a exclusividade deste sacramento aos homens batizados pertence à própria substância do Sacramento da Ordem, que a Igreja não pode alterar?
5. Um penitente que, admitindo um pecado, se recuse a manifestar, de qualquer forma, a intenção de não voltar a cometer tal pecado pode receber a absolvição sacramental?
O leitor haverá de me dizer “mas para que os cardeais perguntam se eles sabem a resposta?” Bom, que eles (e muitos de nós) sabem a resposta é evidente, até pela maneira como as perguntas foram novamente formuladas – e, ao menos no caso das bênçãos a uniões homoafetivas, já existe um responsum muito bem escrito, de 2021. Mas, nestes tempos de confusão, é preciso que o papa faça aquilo que Cristo pediu a Pedro: reafirmar os irmãos na fé. Isso nos leva a uma obrigação da Igreja que tem muita relação com um tema implícito em algumas das respostas já dadas: o primado da consciência.
Citando João Paulo II, por exemplo, Francisco fala em “pessoas cuja culpabilidade ou responsabilidade podem estar atenuadas por diversos fatores que influem na imputabilidade subjetiva”. E Fernández, respondendo recentemente a um dubium de um cardeal tcheco sobre a possibilidade de divorciados em nova união civil receberem a comunhão, afirmou que “cada pessoa, individualmente, é chamada a se colocar perante Deus e expor sua consciência diante Dele, com suas possibilidades e limites (...) Esta consciência, acompanhada por um pastor e iluminada pelas diretrizes da Igreja, é chamada a se formar para avaliar e oferecer um julgamento que permita discernir a possibilidade de acesso aos sacramentos”.
É verdade que existe uma obrigação de se seguir a própria consciência; alguém que faz algo objetivamente errado, mas crendo de boa-fé que faz o certo, ou que erra por ter sido erroneamente guiado por um terceiro no qual deposita sua confiança, de fato tem sua responsabilidade atenuada. Essa ideia encontrou abrigo até mesmo em alguns ordenamentos legais, como o “erro de tipo” e o “erro de proibição” previstos nos artigos 20 e 21 do Código Penal brasileiro. Mas a obrigação de seguir a própria consciência em assuntos morais existe em conjunto com outras duas: a obrigação que cada um tem de formar bem a própria consciência, e a obrigação que a Igreja tem de ajudar a formar corretamente a consciência dos católicos. Os dubia dos cinco cardeais são uma forma de levar a Igreja e seus líderes a cumprir bem esta terceira obrigação.
Qualquer pessoa ou atividade humana lícita pode ser abençoada, e isso vale inclusive para um indivíduo que seja homossexual. O que a Igreja não pode é abençoar os atos ilícitos
Por fim, uma observação a respeito da forma como o papa respondeu à pergunta sobre a bênção para uniões homoafetivas. Primeiro, ele acerta ao dizer que tais uniões jamais podem ser equiparadas ao matrimônio católico, e que por isso não há como realizar nenhum ato que leve os fiéis a achar que tal equivalência existe. Mas, depois de falar de “caridade pastoral”, Francisco diz que “a prudência pastoral deve discernir adequadamente se há formas de bênção, solicitadas por uma ou várias pessoas, que não transmitam uma concepção equivocada do matrimônio. Porque, quando se pede uma bênção, se está expressando um pedido de auxílio a Deus, uma súplica para se viver melhor, uma confiança em um Pai que pode nos ajudar a viver melhor”.
Qualquer pessoa ou atividade humana lícita pode ser abençoada, e isso vale inclusive para um indivíduo que seja homossexual. O que a Igreja não pode é abençoar os atos ilícitos. Eu posso pedir a um padre que abençoe uma viagem próxima, mas se eu lhe disser “padre, me dê a bênção de viagem porque vou ao Canadá me internar em uma clínica de eutanásia, já que me considero realizado e vivi tudo que tinha para viver”, um padre com a cabeça no lugar jamais iria atender meu pedido. No contexto de dois homossexuais que estão juntos, a única possibilidade de um pedido de bênção baseada na “confiança em um Pai que pode nos ajudar a viver melhor” seria se eles estivessem dispostos a viver a castidade que a Igreja lhes pede – o mesmo, aliás, valeria para um casal em segunda união civil. Mas suspeito de que não é o caso; pretendem que a Igreja abençoe uniões (homo ou heterossexuais) que não são matrimônio, mas em que os envolvidos pretendem viver maritalmente, ou seja, abençoar aquilo que a doutrina católica considera pecado. E isso a Igreja não tem como fazer.
E quando o Sínodo começar mesmo?
A partir de quarta, é como diria Eduardo Cunha, “que Deus tenha misericórdia dessa nação”.
No fim de semana, o cardeal Fernández escreveu no Facebook sobre o que esperar e o que não esperar do Sínodo. Neste segundo caso, ele disse o seguinte:
“Embora seja preciso permanecer abertos ao que Deus queira fazer, não creio que este mês serão debatidas questões como o celibato, a ordenação de mulheres ou coisas do tipo, porque cada um desses temas exigiria muitíssimo estudo prévio, debates regionais, e então, para cada assunto, seria preciso ter um Sínodo inteiro, ou dois. Por isso, a respeito dessas questões muito discutidas, só poderia surgir o pedido de estudá-las, mas não uma conclusão. Simplesmente não seria sério. Aliás, este ano o Sínodo nem terminará com um documento final.”
Minha confiança na indefectibilidade da Igreja me tranquiliza; sei que a Igreja jamais dirá que o azul agora é verde, não legitimará o pecado nem o erro. Mas também sei que nunca desistirão de tentar que ela o faça, e entre esses há muitos dentro da própria Igreja. Rezemos, portanto, para que nos próximos dias Deus fortaleça o papa Francisco e seus colaboradores na missão de confirmar a fé de todos, para que os lobos sejam devidamente expostos e rechaçados, para que os verdadeiros pastores exponham a sã doutrina com clareza e com ternura.
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