Frank Pavone durante evento pró-vida.| Foto: Priests for Life/Wikimedia Commons/Domínio público
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A comunidade pró-vida em todo o mundo, e os católicos norte-americanos em particular, foram pegos de surpresa com a notícia da laicização do até então padre Frank Pavone, um verdadeiro furacão na defesa do nascituro (pense num padre Lodi on steroids), e que ajudou a trazer à fé católica pessoas como Norma McCorvey (a “Jane Roe” de Roe v Wade) e Abby Johnson, ex-diretora da Planned Parenthood. Quem deu a notícia em primeira mão foi a Catholic News Agency, vinculada à rede de televisão EWTN. Pavone, fundador e diretor da organização Priests for Life (“padres pela vida”), foi considerado culpado de “comunicações blasfemas em mídias sociais” e “persistente desobediência a instruções legítimas de seu bispo diocesano”, de acordo com uma carta enviada pelo núncio apostólico nos Estados Unidos, arcebispo Christophe Pierre, aos bispos norte-americanos em 13 de dezembro, comunicando a decisão tomada pelo Dicastério para o Clero em 9 de novembro. O problema é que nesse quebra-cabeça estão faltando inúmeras peças.

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E as mais importantes estão ligadas ao delito real que o (agora ex-)padre Pavone teria cometido. Que publicações em mídias sociais foram consideradas “blasfemas”? O máximo que os repórteres da CNA conseguiram encontrar foram alguns tweets (posteriormente apagados) em que Pavone deve ter soltado algumas “f-bombs” (isso eu estou presumindo; o texto da CNA substituiu a palavra usada por um “expletive”) atacando o candidato democrata Joe Biden e seus apoiadores durante a campanha presidencial de 2020. Mas convenhamos, “xingar muito no Twitter” é o mesmo que blasfêmia? A CNA ouviu o padre canonista Gerald Murray, que usou a seguinte definição de “blasfêmia”: “Falar contra Deus de maneira desdenhosa, abusiva ou em tom de zombaria; ridicularizar e desdenhar dos santos, de objetos sacros ou de pessoas consagradas a Deus também é blasfemo porque Deus é indiretamente atacado”. Não parece que seja o caso dessas publicações de Pavone.

E quanto às brigas com o bispo? Quanto a isso, infelizmente Pavone tem um longo histórico de atritos. Pavone foi ordenado em 1988, na Arquidiocese de Nova York, pelo cardeal John O’Connor, que incentivou a militância pró-vida do sacerdote, mas ele se desentendeu com o arcebispo seguinte, o cardeal Edward Egan; então, Pavone conseguiu transferência para Amarillo, no Texas, onde o então bispo, John Yanta, concordou em receber o padre e deixá-lo seguir adiante com a dedicação à causa pró-vida, mas o caldo azedou de novo com o sucessor de Yanta, bispo Patrick Zurek. Em parte por causa da forma pouco transparente com que Pavone administrava a dinheirama do Priests for Life, como mostra esse texto de 2011 enviado por um amigo (o caso rendeu até uma restrição às atividades de Pavone fora da diocese), em parte porque o padre se envolveu de cabeça na polarização política norte-americana, tendo até trabalhado nas campanhas de Donald Trump em 2016 e 2020.

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Se o Vaticano fez a coisa certa, e não excluo a possibilidade de que tenha feito, seria preciso divulgar mais detalhes. Porque, até o momento, o que temos é uma pena que parece desproporcional ao delito

Em 2019, Pavone recebeu do Vaticano autorização para deixar Amarillo e buscar outra diocese, mas aparentemente ele não se incardinou em nenhum outro lugar desde então, a julgar pelo que uma porta-voz do Priests for Life disse à CNA, afirmando que não podia “divulgar o nome do bispo ou da diocese na qual ele [Pavone] esperava ser incardinado”. Essa situação, embora não tenha rendido punição alguma a Pavone, também é vetada pelo Código de Direito Canônico, que diz: “Todos os clérigos devem estar incardinados ou em alguma Igreja particular ou prelatura pessoal, ou em algum instituto de vida consagrada ou sociedade dotados desta faculdade, de tal forma que de modo nenhum se admitam clérigos acéfalos ou vagos” (cân. 265).

Tudo isso nos leva à pergunta seguinte: se Pavone fez o que o Vaticano disse que ele fez, isso merece a perda do estado clerical? Sobre a blasfêmia, o Código de Direito Canônico se limita a afirmar que “quem em espetáculo ou reunião pública, ou por escrito divulgado publicamente, ou utilizando por outra forma os meios de comunicação social, proferir uma blasfêmia, ou lesar gravemente os bons costumes, ou proferir injúrias ou excitar o ódio ou o desprezo contra a religião ou a Igreja, seja punido com uma pena justa” (cân. 1368). A mesma expressão, “pena justa”, é usada no cân. 1371, que define o delito de “quem, por outra forma, não obedecer à Sé Apostólica, ao Ordinário ou ao Superior quando legitimamente mandam ou proíbem alguma coisa e, depois de avisado, persistir na desobediência”. O padre Gerald Murray disse conhecer um caso de um ex-sacerdote na França que havia sido laicizado por conflito constante com o bispo, mas não de alguém que tenha perdido o estado clerical por blasfêmia.

A coisa se complica justamente porque os delitos dos quais Pavone é acusado não estão entre aqueles explicitamente punidos com a laicização (como são, por exemplo, a apostasia, a heresia, o cisma, a agressão física contra o papa, a solicitação de favores sexuais durante a confissão); fala-se apenas em “pena justa”. É possível que, em certos casos de blasfêmia ou desobediência, a pena justa seja a perda do estado clerical? Evidente que sim; mas a regra geral é partir do menos severo até o mais severo, como diz o cân. 1349 (“Se a pena for indeterminada e a lei não estabelecer outra coisa, o juiz não imponha penas mais graves, especialmente censuras, a não ser que a gravidade do caso o exija absolutamente”). E o cân. 1336 traz uma listinha de possíveis punições, das quais a demissão do estado clerical é a última.

E aí é que está: para Pavone ter recebido logo de cara a pena mais severa, aparentemente ele precisaria ter feito algo muito mais grave que aquilo que vem sendo ventilado até agora. Pode ser que haja esse algo – infelizmente, temos casos bem famosos de padres que criaram obras extraordinárias, mas que ao mesmo tempo levavam uma vida oculta em que cometiam verdadeiras barbaridades. Mas, se esse algo existe, não foi tornado público, e isso lança muitas dúvidas sobre o que realmente aconteceu, especialmente quando comparamos este caso com outras situações recentes. Theodore McCarrick foi laicizado, mas tem uma ficha corrida repleta de abusos sexuais; o padre Marko Ivan Rupnik cometeu abusos, chegou a absolver uma das mulheres com quem ele tinha se relacionado sexualmente e por isso foi excomungado, mas sua excomunhão foi depois levantada, e ele continua sacerdote, embora sujeito a algumas penas canônicas. Pavone recebeu a mesma pena de McCarrick sem ter (até onde se sabe) feito algo tão grave quanto o que fizeram McCarrick ou Rupnik. Se o Vaticano fez a coisa certa, e não excluo a possibilidade de que tenha feito, seria preciso divulgar mais detalhes. Porque, até o momento, o que temos é uma pena que parece desproporcional ao delito – em outras palavras, uma injustiça.

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Coluna em recesso; voltamos em fevereiro

A coluna fará uma pausa, aproveitando este fim de ano, e volta em meados de fevereiro. Desejo a todos os leitores um santo Natal e um feliz 2023. Aos que estão desanimados com as perspectivas para o país a partir de 1.º de janeiro, recordo o que escrevi outro dia: “presidente nenhum tem a capacidade de nos impedir de buscar a santidade, nem de criar bem nossos filhos e ensiná-los a buscar o verdadeiro, o bom e o belo, nem de dar testemunho cristão diante da família, dos amigos, dos colegas de trabalho”. Que nos empenhemos nessa tarefa no próximo ano.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]