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Não acompanho frei Gilson Azevedo, que se não me engano é carmelita. Mas sei que ele é um fenômeno da internet, com milhões de seguidores no Instagram e no YouTube, e que muita gente acorda de madrugada para rezar com ele (não faço parte desse grupo). E sei também que ele tem apanhado por causa do que faz – as críticas mais recentes têm a ver com a Quaresma de São Miguel, que ele tem promovido nos seus perfis, com a oração ao vivo às 4 da manhã. São 40 dias de oração, iniciados na solenidade da Assunção de Nossa Senhora e que terminarão na festa dos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, no próximo dia 29.
E não é só um frei Lorrane da vida dizendo bobagens como “essa oração, sem ação, é em vão” (ele está aprendendo a fazer poesia ruim com dom Vicente Ferreira?) e se referindo a “gurus católicos”, para evitar citar o nome de frei Gilson – depois o franciscano se defendeu afirmando justamente isso, que não mencionou ninguém, mas pra bom entendedor pingo é letra, não é? Vi também outras críticas, falando de “exagero”, que “noite foi feita para dormir”, e até que “quaresma só tem uma” – do ponto de vista do calendário litúrgico, é verdade, mas, se querem exclusividade no uso do termo, reclamem com São Francisco de Assis, que criou essa devoção e lhe deu esse nome, de acordo com os biógrafos do santo.
Um convento de freiras de clausura faz mais pelo mundo e pela Igreja com sua oração que a maioria de nós
Começo com o frei Lorrane, cujas opiniões são públicas e estão aí nas mídias para vocês conferirem e avaliarem. Dizer que “oração sem ação é em vão” é aquele erro típico de quem instrumentaliza absolutamente tudo em nome da tal “transformação social” (que muitas vezes é só um nome bonito para “revolução socialista”): assim como se dizia que toda arte tinha que ser “engajada”, para os freis Lorranes da vida a oração também tem que ser “engajada”, do contrário não vale. Que enorme engano! A oração nunca é em vão, porque é o momento de encontro da pessoa com Deus, e que Ele jamais rejeita. Posso apostar que um convento de freiras de clausura faz mais pelo mundo e pela Igreja com sua oração que a maioria de nós. Além disso, quem garante que os “gurus católicos” que frei Lorrane tanto critica, e aqueles que com eles rezam, não “agem”? Para dar só um exemplo, sei lá se o frade foi sujar os pés de lama no Rio Grande do Sul, ou se estimulou doações, o que for; mas o Instituto Hesed foi lá.
Já as outras críticas refletem o que, na “mais pior” das hipóteses, é um profundo incômodo com o fato de que as pessoas estejam rezando, e, na “menos pior” das hipóteses, é um profundo incômodo com o fato de que as pessoas estejam rezando de uma forma que eu não aprovo. Como se tudo o que desviasse do jeitinho que eu considero o ideal fosse “exagero” ou valesse menos. Rezar o terço rápido demais, rezar o terço devagar demais, rezar os quatro conjuntos de mistérios de uma vez, rezar um conjunto de mistérios por dia, rezar no ônibus ou na academia, montar um oratório em casa para as orações, rezar acompanhando um vídeo ou áudio no celular, rezar às 4 da madrugada, rezar às 4 da tarde, rezar em latim, rezar em português, rezar junto com o frade conservador, rezar junto com o “padre da caminhada”, rezar se distraindo apesar do esforço, rezar totalmente desligado do mundo, tudo isso pode estar “errado”, pode ter menos valor, pode ser “exagero” ou “em vão” dependendo do sommelier de devoção que o pobre do católico encontrar pela frente.
Todos temos nossas preferências sobre liturgia, música sacra, tipo de leitura espiritual, e sobre devoções. Cada um sabe (e, pra quem não sabe, um bom diretor espiritual ajuda) o que é melhor para fomentar sua relação com Deus, e o que tem condições de fazer. “Ah, mas acordar às 4 da madrugada bibibi bobobó”. Tá, e o sommelier de devoção aí conhece as circunstâncias particulares de cada um? Sabe a rotina diária da pessoa? Conhece o relógio biológico dela? Sabe se ela também não está fazendo isso porque escolheu se mortificar dessa forma (aliás, mortificação “sem ação” também não é “em vão”, ok?)?
Não são só nossos juízes e políticos que andam com grandes problemas em relação à liberdade das pessoas; muitos católicos também entraram nessa. Querem definir as opiniões políticas, sociais e econômicas “certas”, os comportamentos “certos” e até devoções “certas” quando a Igreja não nos exige nada disso e nos dá uma enorme liberdade de escolha. Os redatores das Análises de Conjuntura da CNBB, os fiscais de tamanho de saia e os adversários da Quaresma de São Miguel às 4 da madrugada têm isso em comum, desprezo pela capacidade de discernimento e escolha dos outros naquilo em que há uma infinidade de opções lícitas (está claro que não estou falando de defender heresia nem pecado, certo?). Deus nos livre dessa turma, deixemos todo mundo rezar em paz e sejamos gratos por haver quem fomente nas pessoas o desejo de se aproximar de Deus.