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Na usina de rumores vaticanos, já se dá como praticamente certo que o arcebispo Georg Gänswein, ex-secretário particular de Bento XVI tanto durante o pontificado quanto nos anos de papa emérito, será nomeado núncio apostólico na Costa Rica. Alguns falarão em “exílio”, mas, para outros observadores da política papal, a medida não seria nada muito diferente da forma como a banda toca habitualmente – na verdade, ela poderia até ser uma espécie de reabilitação para quem ainda hoje mantém o cargo de prefeito da Casa Pontifícia, mas está na prática dispensado de suas funções desde 2020, quando Francisco pediu que Gänswein se dedicasse exclusivamente ao cuidado do papa emérito, sem no entanto demiti-lo formalmente.
Admiro muito Gänswein pela sua lealdade em relação ao papa Bento, mas por outro lado achei que o timing do lançamento de seu livro de memórias, duas semanas depois do falecimento do pontífice, foi muito pobre. Não sei se a data já estava prevista antes que Bento falecesse; se estava, podia muito bem ter sido adiada devido às circunstâncias – se foi decidida após a morte do papa, acho que fica ainda pior para Gänswein e a editora, pois é impossível não imaginar que tivesse havido algum desejo de capitalizar em cima dos últimos acontecimentos. Ainda mais quando o livro trazia uma série de afirmações que contestavam a narrativa sobre uma harmonia inabalável entre Bento XVI e Francisco.
Que os dois papas se estimavam e se respeitavam era algo bastante evidente, mas também acho plausível que algumas decisões de Francisco tivessem desagradado Bento, como diz Gänswein em seu livro – especialmente no caso das restrições impostas pelo atual papa à celebração da missa tridentina, que Bento havia facilitado com seu motu proprio de 2007. As duas coisas não são mutuamente excludentes. A questão é que, ainda que tudo que esteja narrado no livro do arcebispo e ex-secretário seja 100% verdadeiro, não era a hora de trazer tudo aquilo à tona, jogando lenha em uma fogueira que já vinha acesa mesmo com Bento XVI ainda vivo, e provavelmente contra a vontade do papa emérito. Não surpreende que Francisco não tivesse recebido bem a publicação, e tivesse chamado Gänswein para uma conversa privada em algumas ocasiões, a última delas em março.
O padrão é que secretários de papas falecidos acabem indo para longe de Roma de um jeito ou de outro
Mas mandar Gänswein para a Costa Rica chegaria a ser uma punição? Não exatamente, conta John Allen Jr. no Crux. Na verdade, o padrão é que secretários de papas falecidos acabem indo para longe de Roma de um jeito ou de outro – um deles chegou a ser mandado por seus superiores para as Filipinas. Na conta de Allen, de todos os ex-secretários desde Loris Capovilla (que assessorava São João XXIII e ainda ficou em Roma por poucos anos como perito do Concílio Vaticano II, mas logo depois foi nomeado bispo na Itália Central), o mais “bem-sucedido” foi Stanislaw Dziwisz, o fiel escudeiro de São João Paulo II que virou cardeal-arcebispo de Cracóvia. Nenhum desses ex-secretários chegou a ser núncio apostólico, o que por si só é um posto de prestígio (o núncio é um embaixador da Santa Sé), e ainda por cima, no caso de Gänswein, seria um retorno à ativa, considerando que hoje ele está “encostado” no Vaticano – um raciocínio que valeria mesmo se os rumores não se confirmarem e o arcebispo acabar em outro lugar ou outro cargo.
Papa confirma normas para combate a abusos na Igreja
No último fim de semana, o papa Francisco promulgou uma nova versão do motu proprio Vos estis lux mundi, com normas para coibir, investigar e punir crimes de abuso dentro da Igreja. O documento original era de 2019 e previa um período de experimentação; a versão atualizada já reflete o aprendizado colhido desde então e os resultados de consultas aos bispos em todo o mundo. O novo texto deixa claro que adultos “vulneráveis” também podem ser vítimas de abuso, e uma mudança bastante significativa inclui a responsabilização de “fiéis leigos que são ou foram moderadores de associações internacionais de fiéis reconhecidos ou erigidos pela Sé Apostólica, por atos cometidos” enquanto esses fiéis estavam no cargo – antes, a responsabilização atingia apenas bispos, clérigos e superiores de ordens religiosas.
Achei interessante que o Vatican News, ao noticiar a nova versão do motu proprio, tenha ressaltado que “o documento incluía e continua a incluir não apenas o assédio e a violência contra menores e adultos vulneráveis, mas também abrange a violência sexual e o assédio resultante do abuso de autoridade. Esta obrigação também inclui, portanto, todo e qualquer caso de violência contra religiosas por parte de clérigos, bem como o caso de assédio a seminaristas ou noviços maiores de idade”. Impossível não pensar no caso do padre Marko Ivan Rupnik, artista sacro esloveno responsável por obras no mundo inteiro, incluindo o Santuário Nacional de Aparecida (estive lá em janeiro e digo que gostei muito dos mosaicos), mas que foi investigado e está sendo punido por uma série de abusos cometidos contra religiosas décadas atrás – aliás, registre-se que em fevereiro a PUCPR retirou o doutorado honoris causa concedido a ele no fim de 2022.
Não há “caminho sinodal” nem loucuras doutrinais assemelhadas que tirem dos escândalos de abuso o posto de grande chaga dentro da Igreja. Temos de rezar para que esses monstros sejam todos encontrados, investigados e punidos. Mas também temos de rezar muito pela formação de sacerdotes; quem quer que tenha lido Adeus, homens de Deus sabe que essas crises são gestadas em seminários onde se vive de tudo, menos a fé católica. É uma leitura deprimente, mas recomendadíssima, mostrando como bem antes de os escândalos estourarem, no início do século 21, muitos seminários já tinham se tornado porto seguro para abusadores do presente, formando os abusadores do futuro. Tenho a curiosidade de saber se o autor chegou a publicar alguma edição atualizada de sua obra, já assimilando os esforços de João Paulo II, Bento XVI e Francisco contra os abusos.