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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Recomendações de leitura

Dois papas, dois livros

O cardeal George Pell reza diante do corpo de Bento XVI, no Vaticano; australiano morreria poucos dias depois do papa emérito, em 10 de janeiro de 2023. (Foto: Massimo Percossi/EFE/EPA)

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Depois de um recesso mais longo que o esperado, a coluna está de volta. Sim, perdemos algumas coisas nesse intervalo, mas não completamente: se você quer um conteúdo de primeira sobre Bento XVI, que nos deixou no fim de 2022, não perca nosso e-book, que traz boa parte do caderno especial que tive a honra de editar quando do fim do seu pontificado, em 2013. Quanto às loucuras recentes do “caminho sinodal” alemão, bom, nada que eu não tenha comentado exaustivamente em colunas anteriores. Por isso, marco esse retorno com duas recomendações de livros – que, na verdade, são recomendações de gente muito mais gabaritada que eu.

O sofrimento heroico do cardeal George Pell

Como se não bastasse termos perdido Bento XVI, poucos dias depois Deus chamou para a recompensa eterna o cardeal George Pell, aos 81 anos. Foi um falecimento repentino e inesperado, de complicações decorrentes de uma cirurgia no quadril. Já disse a algumas pessoas que, em 2013, se eu estivesse no conclave, teria votado no australiano quantas vezes fosse necessário. O jornalista George Weigel conta que, no fim da vida, o papa emérito pedia que lessem para ele livros ou artigos, em voz alta. E, durante os funerais de Bento XVI, seu secretário, o arcebispo Georg Gänswein, encontrou-se com Pell na Basílica de São Pedro e disse ao cardeal que a última dessas leituras tinha sido exatamente o primeiro volume do diário escrito por Pell na prisão.

Resumindo bastante o caso, Pell foi acusado de abuso sexual contra dois coroinhas na época em que ele era arcebispo de Melbourne. Para boa parte da opinião pública australiana, que odiava o cardeal, era um sonho tornado realidade: o bispo que por muitos anos foi o grande rosto da Igreja australiana, firme na defesa do casamento natural, da família e da vida desde a concepção, era exposto em toda a sua hipocrisia. Mas o julgamento logo mostrou que as coisas não eram bem assim. Uma das supostas vítimas (a outra havia falecido) mudou sua versão, e ficou evidente, tanto por detalhes arquitetônicos da sacristia da catedral quanto pelas circunstâncias que marcavam o fim da de cada missa celebrada por Pell, que era absolutamente impossível que a narrativa alegada fosse verdadeira. Dez jurados votaram por inocentar o cardeal, e apenas dois o consideraram culpado.

Para boa parte da opinião pública australiana, que odiava o cardeal Pell por suas posições firmes em defesa da vida e da família, a acusação de abuso era um sonho tornado realidade. Mas o julgamento logo mostrou que as coisas não eram bem assim

Mas, como a lei local exigia um veredito unânime, houve um novo julgamento, com um novo júri, que desta vez condenou Pell. Sentenciado a seis anos de prisão, o cardeal começou a cumprir pena em 27 de fevereiro de 2019, enquanto apresentava seus recursos. Em agosto de 2019, a Suprema Corte do estado australiano de Victoria manteve a condenação por dois votos a um – o juiz vencido, Mark Weinberg, era o único que havia feito carreira lidando com casos criminais, como promotor, e estava convicto de que Pell deveria ter sido inocentado. Por fim, os sete ministros da Suprema Corte da Austrália, instância final de apelação, inocentaram o cardeal por unanimidade, em abril de 2020. Pell estava livre após ter passado 404 dias na prisão.

O primeiro volume do diário de Pell cobre o período que vai da condenação até meados de julho de 2019, ou seja, ainda antes de o primeiro recurso ser negado. O cardeal narra sua rotina na prisão e sua decisão de não cair na ociosidade, embora estivesse na solitária, proibido de celebrar missa – ele não explica os motivos para tal –, algo que deve ser uma das piores provações para qualquer bom sacerdote; analisa as leituras que faz, especialmente as do Breviário; comenta os resultados do futebol australiano, esporte de que era fã e que praticou, chegando a assinar com um time profissional antes de ir para o seminário; menciona as visitas que recebe e as novidades sobre seu caso e os recursos apresentados à Justiça.

As páginas do diário de Pell mostram um homem que é vítima de uma enorme injustiça, que está consciente do tamanho dessa injustiça, mas que a sofre com dignidade e serenidade. Indignado, certamente, mas jamais revoltado. Reza para que se faça justiça, mas também reza pelos que o acusaram e o condenaram, embora nem sempre considere fácil perdoar os que fizeram campanha para jogar seu nome na lama. Confia no bem que pode vir da sua provação, como o evidenciam as várias cartas que recebe, enviadas por pessoas comuns de todo o mundo. Mas seus comentários também mostram um clérigo que tem plena consciência da situação atual da Igreja, do estado de confusão que alguns bispos e cardeais tentam semear, especialmente em temas relativos à família e à moral sexual, do que poderia e deveria ser feito para reafirmar o ensinamento da Igreja em tempos turbulentos, realçando a beleza da fé. Cada entrada diária termina com uma breve oração ou meditação.

É uma leitura informativa e inspiradora – ainda mais levando em conta as circunstâncias que a produziram. Não me surpreende que Bento XVI tenha gostado. O segundo volume já está na minha biblioteca e na fila de leitura, e estou de olho no terceiro e último, que também já foi lançado.

Francisco e a vinda do Anticristo

Em uma das entrevistas que concedeu para marcar os dez anos de pontificado, o papa Francisco voltou a citar um livro que ele sempre relaciona entre suas influências: O Senhor do Mundo, distopia escrita em 1907 pelo padre Robert Hugh Benson. Em 2015, Francisco recomendou a leitura aos jornalistas que o acompanhavam em um voo, para que pudessem entender o seu conceito de “colonização ideológica”. O papa retomou este tema ao conversar com sua compatriota Elisabetta Piqué, do La Nación, referindo-se explicitamente à ideologia de gênero, que, “neste momento, é uma das colonizações ideológicas mais perigosas (...) vai diluindo as diferenças e construindo um mundo todo igual, todo chato, e isso vai contra a vocação humana”. Quando a jornalista menciona um formulário que teve de preencher na Argentina e que tinha as opções masculino, feminino e não binário, Francisco continua: “A experiência futurista que tive sobre isso há muitos anos foi quando li um romance que recomendo sempre, O Senhor do Mundo, de Benson, escrito em 1907. Parece bem moderna, não? (...) Mostra um futuro em que as diferenças vão desaparecendo e tudo é igual, uniforme, um único chefe de todo o mundo”. Este “único chefe” é bem mais que isso: é o próprio Anticristo, que não se revela como tal, mas que progressivamente assume o poder sobre todo o planeta, mais pela lábia que pela força, impondo uma forma de humanismo secular a que apenas a Igreja Católica tenta resistir.

Você pode ler O Senhor do Mundo e se impressionar com a capacidade de Benson imaginar tecnologias como armas de destruição em massa e bombardeios aéreos, mas é como ler 1984 e se concentrar apenas nas geringonças que o Grande Irmão usa para doutrinar e monitorar as pessoas dentro de suas casas, em vez de olhar o Estado totalitário que é construído. Benson anteviu a perda total da noção de sacralidade da vida humana, que o meu colega Flavio Gordon vem dissecando há semanas em sua coluna – existem até “clínicas de eutanásia” muito parecidas com o MAiD canadense; e o clima geral de perseguição aos católicos, que pode não ser ostensivo como no livro, mas não é menos intenso, a ponto de hoje ser ilegal rezar silenciosamente diante de clínicas de aborto na Inglaterra. E essa perseguição se dá justamente em torno de questões de vida, família e moral – inclusive a ideologia de gênero.

Francisco não é o único papa a citar O Senhor do Mundo de forma favorável, como uma antecipação do que estaria por vir; Bento XVI também leu o livro de Benson e o recomendou. Por mais “pesado” que possa ser em alguns momentos, como diz o papa Francisco, o livro também é um alento, pois todos sabemos como tudo isso termina, e quais são os instrumentos que os católicos têm à sua disposição e que nos garantirão a vitória certa, ainda que perdendo muitas batalhas antes do desfecho.

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