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Os Evangelhos descrevem dois episódios diferentes em que Jesus expulsa os vendilhões do Templo: no capítulo 21 de São Mateus e no capítulo 2 de São João. Em ambos os relatos, o tema comum é a transformação da casa de Deus em outra coisa – um “covil de ladrões” em Mateus e uma “casa de negociantes” em João. Nos últimos meses, no entanto, andam transformando a casa de Deus em algo diferente, em casa de idolatria político-ideológica. O senso de respeito pelo local sagrado e, pior ainda, pela própria missa foi completamente perdido, subordinado a preferências políticas.
Da invasão da Igreja do Rosário, em Curitiba, por militantes identitários sob o pretexto de “combate ao racismo” muito já se falou. A esquerda adora lembrar que o arcebispo de Curitiba disse aos vereadores que Renato Freitas não deveria ser cassado, que o grupo só entrou na igreja depois da missa. Mas se esquece (ou quer esquecer) que a manifestação da Arquidiocese não inocentava totalmente o vereador: o texto dizia que houve “excessos” como o “desrespeito ao local sagrado”, merecedores de “medida disciplinadora proporcional ao incidente”. Fato é que houve interferência na celebração, que teve de ser “acelerada” por causa do barulho do lado de fora; além disso, como a Gazeta do Povo escreveu em editorial, igrejas não são “terra de ninguém” fora do horário de missa. As imagens mostram que havia pessoas rezando, e que Freitas discursou atacando os católicos que, segundo ele, haviam contribuído para que Jair Bolsonaro fosse eleito em 2018.
Não foram menos deprimentes algumas imagens deste 12 de outubro no Santuário Nacional de Aparecida. O presidente Jair Bolsonaro compareceu à missa das 14 horas na Basílica Nacional e o coro midiático veio com a conversa de que “ah, é eleitoreiro”. Não necessariamente: Bolsonaro é o chefe de Estado e Nossa Senhora Aparecida é a padroeira do país; de fato, ele está em campanha pela reeleição, mas o presidente também foi a Aparecida em 2021 (fez leitura e tudo) e 2019 – talvez tivesse ido em 2020 se não estivéssemos no meio do “fecha tudo” pandêmico. A imprensa destacou o fato de Bolsonaro não ter comungado, em tom crítico, embora, considerando o status marital do presidente, na verdade ele fez a coisa certa ao não se aproximar da Eucaristia (mas aí é pedir muito dos meus colegas jornalistas). O problema, no entanto, não foi Bolsonaro, mas os seus apoiadores (e também detratores).
A igreja é o templo do único Senhor e Rei do universo, não é local para adoração de candidato, de identitarismo woke ou de ideologia política
Jornalistas da TV Vanguarda (afiliada da Globo na região) e da TV Aparecida foram hostilizados por bolsonaristas; o mesmo ocorreu com um jovem de camiseta vermelha. A presença de Bolsonaro provocou vaias e uma competição de gritos de “mito” e “Lula” dentro da igreja, a ponto de o sacerdote que celebraria a missa ter precisado intervir, dizendo “silêncio na basílica; prepare o seu coração, viemos aqui para rezar”. A homilia de dom Orlando Brandes, na principal missa da manhã do dia 12, foi recebida com vaias por pessoas que estavam perto da Basílica Velha e viam a celebração por um telão, tudo porque ele falou de mazelas sociais que todo cristão deveria se empenhar em combater. Por mais pública e notória que seja a antipatia de dom Orlando em relação a Bolsonaro, vaiar uma fala dessas só pode ser coisa de gente que não leu uma vírgula de Doutrina Social da Igreja.
E a coisa está se alastrando de uma forma absurda. Já me mandaram duas vezes o vídeo em que um fiel interpela um padre logo depois da homilia aqui na Região Metropolitana de Curitiba. O texto diz que o sacerdote havia pedido voto para Lula; o vídeo não mostra isso, começando com o fim da homilia. Mas eu pergunto: e se houvesse mesmo feito propaganda política na missa? Isso autorizaria o fiel a também ele avacalhar a celebração? Que há sacerdotes infelizmente mais comprometidos com a militância que com a fé, que proclamem as maiores barbaridades mesmo durante a missa, isso todos sabemos. Mas, para repetir um raciocínio que já usei com os bispos belgas outro dia, eu sempre achei que a fase do “mas foi ele quem começou...” acabasse lá pelos 7 ou 8 anos de idade. Nem a pregação mais delirante de um teólogo da libertação, nem o discurso eleitoreiro mais escancarado justifica hostilidade a um sacerdote, nem a transformação do espaço sagrado em palanque. O sacerdote e o bispo que colocam seu ministério ordenado a serviço da heresia ou de ideologias anticristãs haverão de prestar contas a Deus; os leigos podem contestá-los nos fóruns adequados, mas nunca tumultuando o interior de uma igreja, muito menos a missa. E, quando esse tipo de coisa vem de católicos conservadores, que se orgulham de defender a integridade da doutrina, minha tristeza é ainda maior, pois são pessoas que sabem exatamente o que ocorre na celebração eucarística e mesmo assim colocaram suas preferências políticas acima da reverência devida ao momento em que o céu e a terra se unem.
A igreja é o templo do único Senhor e Rei do universo, não é local para adoração de candidato, de identitarismo woke ou de ideologia política.
Um padre empenhado em destruir o mito do “papa de Hitler”
Faleceu, no dia 12, o padre jesuíta Kurt Peter Gumpel. É alguém bastante desconhecido para o tamanho do bem que ele fez à Igreja: ele foi assistente do postulador da causa de canonização do papa Pio XII, e depois relator da causa na Congregação para as Causas dos Santos. Como diz o obituário escrito pelo padre Federico Lombardi e publicado no L’Osservatore Romano, o padre Gumpel foi “o mais dedicado e decidido defensor de Pio XII diante das acusações e objeções levantadas de todos os lados”, pois “provavelmente ninguém estudou e conheceu tão profundamente a figura e a obra de Pio XII”.
O papa que guiou a Igreja durante a Segunda Guerra Mundial é, com quase toda a certeza, o pontífice mais caluniado do século passado. Basta ver como toda a baboseira do “papa de Hitler”, criada pelo regime soviético como peça de propaganda anticatólica, continua sendo divulgada a despeito de todas as evidências históricas de que Pio XII trabalhou com todas as ferramentas que tinha para salvar judeus e condenar o regime nazista, algo reconhecido até mesmo por lideranças judaicas como a primeira-ministra Golda Meir. Tenho orgulho de ter publicado algumas reportagens na Gazeta do Povo sobre o papel de Pio XII em relação ao Holocausto, divulgando trabalhos fenomenais como o da fundação Pave the Way. Entre outros objetivos da entidade fundada em 2002 por um judeu, Gary Krupp, está o de “limpar” a imagem do papa, tendo inclusive conseguido que o Yad Vashem, em Jerusalém, alterasse um texto sobre Pio XII publicado no museu. Não sei se tudo isso teria acontecido sem a disposição do padre Gumpel de remar arduamente contra uma poderosa máquina de propaganda e difamação para restabelecer a verdade sobre Pio XII, a quem um dia a história fará justiça e que, agora, deve ter recebido com alegria, no céu, este seu grande defensor.